domingo, 24 de março de 2024

Jesus e o Reino de Deus

Crónica de Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Na fé, pergunta nuclear é em que Deus se acredita e no que é que, acreditando, muda na vida, na compreensão do ser humano e do mundo. Não seria digno da pessoa acreditar por medo, acreditar num deus que humilha o Homem, num deus que, na sua eternidade feliz, permanecesse indiferente à história humana enquanto um mundo de sofrimento.
Na tradição da experiência cristã, embora a relação com Deus se não esgote na ética, a salvação a partir de Deus é experienciada e vivida no meio do mundo, na relação inter-humana, tanto no amor face a face como na transformação política das estruturas e situações que impedem um mundo de rosto humano. Neste sentido, “fora do mundo não há salvação”, como sublinhava o teólogo E. Schillebeeckx.
Para os cristãos, Deus revelou-se de modo definitivo, embora não exclusivo, na figura histórica de Jesus de Nazaré. E o núcleo da mensagem de Jesus, na sua pessoa, nas suas palavras, na sua vida, na sua morte, é o Reino de Deus. E o Reino de Deus é o próprio Deus enquanto amor incondicional, amor soberanamente libertador dos homens, que fazem a sua vontade. E a vontade de Deus é o Homem digno e livre, o mundo d na paz, na alegria, as pessoas na justiça, no amor, num mundo fraterno, sem dominadores nem dominados.
No contacto com Jesus, muitos, sobretudo os pobres, os desprezados, os doentes, os publicanos e pecadores públicos, os leprosos, os excluídos tanto pela sociedade como pela religião oficial, experienciaram a libertação e a salvação vinda de Deus, reencontrando a dignidade de ser ser humano e saboreando outra vez a alegria de viver. E Jesus tinha consciência de agir e proceder como o próprio Deus procederia, e aqueles que nele acreditaram fizeram e experiência de que, com ele, o próprio Deus e o seu Reino estava no meio deles.
Outros contemporâneos aperceberam-se nitidamente da ameaça e do perigo que Jesus constituía, tanto no domínio religioso como político. Para Jesus, também se tornou claro que o seu anúncio e práxis de um Deus, a quem chamava Abbá, Pai querido, e que não se deixa confiscar por uma casta religiosa que, em ordem à salvação, se apoiava no mérito, no cumprimento da “Lei” e no sacrifício, desconhecendo a misericórdia e a graça, o levariam inevitavelmente à morte. A sua crucifixão teve, assim, motivos religiosos e políticos: o seu Deus era não só perigoso e subversivo politicamente, mas também falso do ponto de vista religioso oficial. Jesus não foi vítima de um Deus sádico, mas de homens, que queriam perpetuar o mal e o sofrimento nos outros homens. A morte de Jesus é a expressão do seu amor incondicional, até ao fim, a Deus tal como o compreendia, isto é, como um “Deus dos homens”, portanto, a favor da dignidade e contra o mal e o sofrimento. Condenado como blasfemo e subversivo, a sua mensagem, do alto da cruz, continua a ser: sois livres para o amor sem condições.
Ressuscitando Jesus, Deus mesmo confirma que está do seu lado, comprometendo-se com a libertação total do ser humano. Também para os cristãos, na História há acaso e necessidade, autonomia e liberdade. Não sendo um mero espectáculo de marionetas, a História pode falhar; porém, a fé no Deus de Jesus, desde a criação por liberdade doadora, funda a esperança de que nem o mal nem a morte dão xeque-mate definitivo a Deus. A fé na ressurreição estaria, no entanto, sempre ameaçada de projecção ilusória, se não tivesse tido realizações fragmentárias antecipadas de libertação e sentido: como a cruz é consequência da maneira de viver de Jesus, também a ressurreição não superaria a acusação de ideologia compensatória, se não tivesse havido a sua antecipação na práxis histórica de libertação e salvação, apoiada na fé de que Deus mesmo, na sua liberdade soberana, decidiu ser um “Deus dos homens”.
Por isso, como o ponto de partida da obra de Jesus foi o anúncio do Reino de Deus, isto é, “a sua experiência do contraste que clama aos céus entre este mundo de injustiça e de sofrimento e a sua vivência de Deus como Pai ou a sua experiência de Deus como princípio de vida simultaneamente paterno e materno”, assim a evangelização por parte da Igreja não pode ser indoutrinação, mas tem, em primeiro lugar, de consistir em “tornar os homens conscientes do intolerável da opressão em que vivem”: este é “o verdadeiro ponto de partida para uma missionação autêntica” (E. Schillebeeckx). Assim, a evangelização não consiste propriamente em conquistar adeptos para a Igreja, mas situa-se na frente dos conflitos, quando a Igreja se coloca do lado dos oprimidos na sua luta por mais humanidade e futuro. Precisamente a preferência pelos pobres e desprezados é a prova maior do significado e relevância universais do Evangelho. Neste combate, está viva uma leitura da História no seu reverso, que é a história dos oprimidos, e a denúncia dos males que os homens causam aos outros homens. Sem este serviço profético-crítico e político, a fé não tem conteúdo real e continua sob a ameaça de ilusão ideológica. Por outro lado, a política, sem a referência à reserva escatológica divina, sem a relação festiva, contemplativa e doxológica com o mistério do Deus vivo, estará sempre radicalmente ameaçada de totalitarismo, niilismo e barbárie. Sem realizações, embora fragmentárias, de libertação intra-histórica, a salvação meta-histórica não seria crível. A salvação começa a operar-se neste mundo, esperando a sua consumação para lá dele.

Anselmo Borges, 

No Diário de Notícias

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