no Diário de Notícias
Numa história de mistura enigmática de bem e de mal, de alegria e de desgraça, de beleza e de terror, de sentido e de absurdo, o ser humano é convocado para o espanto, positivo e negativo. O ponto de arranque para a reflexão será sempre o assombro, positivo e negativo, sendo este provocado concretamente pela massa incrível do sofrimento humano, e, mais imediatamente, pela memória irrecusável da dor infinda das vítimas inocentes. O Homem quer ser feliz e é infeliz. No meio do horror, habita-o a esperança, que não morre, de uma humanidade boa, solidária e verdadeira. Toda a filosofia e teologia que recusem reduzir-se a um mero exercício académico, repetitivo e inútil, hão-de referir-se sempre à reflexão crítica sobre as condições de possibilidade, objectivas e subjectivas, dessa esperança do advento de uma humanidade finalmente reconciliada e livre.
Perante um mundo onde 1.200 milhões de pessoas sobrevivem com 1 dólar por dia, outras 925 milhões passam fome, 114 milhões de crianças em idade escolar não têm escola (63 milhões são meninas), onde anualmente perdem a vida 11 milhões de menores de cinco anos com doenças tratáveis, onde milhões de pessoas têm de deixar a sua terra e deslocar-se por causa das alterações climáticas (secas e inundações catastróficas) e os horrores de guerras em curso, onde o fosso entre os escandalosamente ricos e os pobres é cavado cada vez mais fundo, onde o aquecimento global e o armamento nuclear põem em perigo a própria sobrevivência da Humanidade, onde a cultura tecnocrática reduz o Homem à unidimensionalidade, onde continua a discriminação da mulher e das minorias, onde cresce a experiência do niilismo, a consciência ergue-se indignada: o mundo não está em ordem e não pode continuar tal como está!
É concretamente nas experiências negativas de contraste que se aprende a distinção entre bem e mal e o que significa dignidade humana. Como escreveu o célebre teólogo Edward Schillebeeckx, “o que experienciamos como realidade, o que diariamente, através da televisão e outros meios de comunicação social, vemos e ouvimos acerca desta realidade não está de modo nenhum ‘em ordem’; há algo que está radicalmente mal. Por isso, a experiência humana de sofrimento, maldade e infelicidade é fundamento e fonte de um Não fundamental, que as pessoas pronunciam sobre a facticidade do seu ser-no-mundo.” Nesta experiência radical, acessível a todos os homens e mulheres, encontra-se um duplo elemento: por um lado, a indignação e revolta inamovíveis; por outro, “uma abertura para uma outra situação, que constitui apelo radical ao nosso Sim. Podemos designá-lo como um consentimento 'no desconhecido’, no que nem sequer é determinável com conteúdo positivo: um outro mundo melhor, que ainda não existe em parte alguma. Por outras palavras: na pura aceitação da possibilidade de melhorar o nosso mundo; abertura ao desconhecido e melhor”. Por um lado, um Não indestrutível, um veto radical ao mal; por outro, um Sim aberto a um mundo digno do Homem, um Sim que é mais forte do que o Não, pois é a condição de possibilidade da revolta e indignação contra a indignidade.
Estas experiências negativas de contraste constituem o núcleo da experiência ética, comum a crentes e não-crentes, e base para um esforço solidário na luta contra a injustiça e na construção de um mundo com rosto humano. Mas “aqueles que acreditam em Deus preenchem religiosamente esta experiência fundamental, que é una, embora com dupla face. Então, o ‘Sim aberto’ recebe mais orientação e perfil. O fundamento disso não é tanto, pelo menos não imediatamente, a Transcendência do ‘divino’ (que é inexprimível, por assim dizer, anónimo, não-articulável) como (pelo menos para os cristãos) o rosto humano reconhecível dessa Transcendência, manifestada entre nós no homem Jesus, confessado como Cristo e Filho de Deus. Deste modo, para os cristãos, o lamento radical da Humanidade transforma-se numa esperança fundada. No núcleo mais íntimo da realidade, está presente um suspiro da compaixão, da misericórdia; os crentes vêem aí o nome de Deus. É assim a história dos cristãos”.
No mundo, não há provas constringentes da existência de Deus. Aliás, um deus demonstrável não seria Deus, mas pura criação da razão. Mas a finitude é ineliminável, e precisamente devido à finitude insuperável, a religiosidade surgirá sempre de novo na história. Outra vez E. Schillebeeckx: “Para a fé, a finitude não-divina é precisamente o lugar em que o finito e o Infinito se tocam no mais fundo e é neste contacto profundo que se acende toda a religiosidade”. Por outro lado, o compromisso com o ser humano, na vivência mundana, é, concretamente na tradição cristã, não apenas ético, pois tem uma dimensão teológica. O cristianismo vê na luta pela humanidade do Homem uma profunda dimensão religiosa latente, “que tem essencialmente a ver com a compreensão de fé de que a finitude não é abandonada à sua solidão, mas transportada pela presença absoluta e salvífica do Deus vivo.” O cristianismo contém em si um potencial inesgotável de libertação. Se historicamente também foi causa de opressão e alienação, isso deveu-se a uma traição a si mesmo.
No confronto entre a ética e a esperança, pensando nas vítimas inocentes, Deus virá sempre à ideia, como viu a Escola Crítica de Frankfurt. Onde está a ética?, onde está Deus?, gritam as vítimas.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia