no Diário de Notícias
Os Evangelhos referem mais de uma vez que Jesus chorou: nomeadamente, pela morte do seu amigo Lázaro e sobre Jerusalém e a sua ruína. Nunca se diz explicitamente que sorriu ou riu. Mas está escrito que se alegrou e exultou.
Comover-se, chorar, é próprio do ser humano. Como é próprio do ser humano sorrir e rir. Por isso, lá está Santo Tomás de Aquino a argumentar que, se era humano, é claro que também riu e sorriu. O animal não chora, nem ri. O rosto de um ser humano que ri às gargalhadas pode ser do mais bonito que há. Sorrir e rir é sinal da transcendência humana: o ser humano está para lá do dado e do facto e, por isso, sempre também para lá de si mesmo. Ai do homem incapaz de rir-se de si próprio...
Evidentemente, há muitas formas de sorriso e riso, e as suas causas são múltiplas. O riso exultante não se identifica com o riso do desdém. O sorriso saltitante do acolhimento e da ternura nada tem a ver com o sorriso da ironia sardónica, e, muito menos, com o sorriso sobranceiro do desprezo. Em situações-limite, o riso estoira em lágrimas e a dor explode em riso. Tive uma vez uma jovem estudante que me pediu para escrever um “trabalho” precisamente sobre o riso, pois aconteceu-lhe que a mãe ao entrar na igreja e ao ver o cadáver da sua própria mãe (avó da jovem) começou a rir. Cá está: foi tal a dor, a angústia pela morte da mãe, que começou a rir-se - é isso: rimos até às lágrimas, choramos até ao riso…
Sintomaticamente, parte substancial das nossas piadas e anedotas não versam propriamente sobre o jocoso, em si mesmo, mas sobre realidades tremendamente sérias: o sexo, a morte, o Além... Talvez por isso mesmo: por serem terrivelmente sérias. Talvez também por isso, o poder, em princípio, não tem boas relações com o humor e o riso e as ditaduras não o toleram. É que o humor e o riso podem transportar consigo doses maciças de subversão corrosiva do poder no seu exercício, sobretudo no seu ridículo - não provém ridículo de ridere, precisamente rir?
Estas más relações são notórias concretamente quando consideramos o poder eclesiástico. Ainda não há muitos, muitos anos que os seminaristas nos seminários e as freiras nos conventos passavam os dias e as noites de Carnaval em adoração ao Santíssimo Sacramento, desagravando-o pelos pecados cometidos nesses dias e nessas noites. Não sei se alguém sabia ou saberá exactamente onde é que estava ou está a diferença entre os pecados do Carnaval e os pecados das outras épocas do ano...
Foi tardiamente que os cristãos aceitaram os festejos carnavalescos às portas dos rigores da Quaresma. Apesar das tentativas da Igreja oficial para travá-los, eles continuaram e impuseram-se. Seja como for, havia na Idade Média uma festa, que era a Festa dos Loucos. Nessa festa, chegava-se ao cúmulo de paramentar um burro, que entrava, portanto, na igreja com as vestes litúrgicas.
Realizava-se a Festa dos Loucos, uma crítica brutal ao poder eclesiástico. Arranjava-se um subdiácono, o grau mais baixo da hierarquia, era vestido de “bispo”, colocado em cima de um burro, entrava na igreja com a face voltada para a cauda, de costas para o altar. Em momentos fundamentais da liturgia, o celebrante e o povo zurravam. Na transmissão simbólica do báculo episcopal, rezava-se o Magnificat naquele passo: “E Deus derrubou os poderosos e exaltou os humildes.”
Há um texto da Faculdade de Teologia de Paris, que, em 1444, assim quer justificar a Festa dos Loucos: “Os nossos eminentes antepassados permitiram esta festa. Porque haveria ela de ser-nos interdita? Os tonéis do vinho rebentariam, se de vez em quando não se abrisse o batoque para arejá-los. Ora, nós somos velhos tonéis mal ajustados, que o vinho da sabedoria rebentaria se o deixássemos ferver numa devoção contínua ao serviço divino. É por isso que dedicamos alguns dias aos jogos e à palhaçada, a fim de voltarmos em seguida com mais alegria e fervor ao estudo e aos exercícios da religião.” Pelo menos, nessa altura, era permitido pôr a ridículo o poder clerical.
No meio de todo aquele aparato do Vaticano, não há uma contradição entre a pompa e a cruz? E há aquele texto do filósofo Sören Kierkegaard, que diz mais ou menos assim: vai Sua Excelência Reverendíssima o Bispo de Copenhaga, revestido de paramentos com filamentos de ouro e um báculo e uma mitra debruados de pedras preciosas, com todo o seu séquito em esplendor, senta-se num cadeirão de prata e dá início à sua homilia sobre a pobreza. E ninguém se ri!...
A alguém que se sentisse irritado com estas perguntas lembro um texto de Joseph Ratzinger, mais tarde Bento XVI, no qual escreveu que, se hoje se critica menos a Igreja do que na Idade Média, não é porque se tem mais amor à Igreja, mas a si e à carreira.
É, para mim, evidente que não deve, não pode ser permitido ridicularizar de modo boçal o Sagrado, o Divino. Se isso fosse permitido, era a hecatombe. Mas a questão é outra: pôr a nu, pelo riso, a diferença entre o Sagrado e aquilo que nós, seres humanos finitos, fazemos dele é saudável. Porque o Divino e o Sagrado não se identificam com o que fazemos deles. Quem pode imaginar e admitir o ridículo de certas imagens de Deus na inteligência e no coração de alguns crentes? Assim, rir-se do modo como nós falamos do Mistério e do modo como o tratamos pode ser uma maneira sã de nos darmos conta da Transcendência do Mistério e do Divino. Que ao mesmo tempo se revelam e se ocultam.
Anselmo Borges no DN
Padre e professor de Filosofia.