Jorge Pires Ferreira,
diretor do Correio do Vouga
- Diocese de Aveiro
A declaração (“Fiducia supplicans”) que possibilita abençoar, dentro de certas condições, casais em situações irregulares e casais do mesmo sexo causou várias reações entre católicos e não católicos.
Entre estes últimos, indiferentes na sua grande maioria para a questão, as opiniões que se ouviram foram de apreço. Parecia, a julgar pelas primeiras notícias na comunicação social generalista, que finalmente a Igreja aceitava a homossexualidade.
Entre os católicos, as reações foram – e são – de dois tipos. Para uns, é um passo em frente, e positivo, na abordagem da homossexualidade (os “casais em situações irregulares” pouco interessam para o caso). Estes, que consideram o documento como algo positivo, subdividem-se entre os que acham que há novidade na prática e os que dizem que não há propriamente novidade porque “não se pretende sancionar nem legitimar nada” (n.º 34).
Para os outros, os que receberam negativamente a declaração, há novidade, mas é uma contradição em relação ao que a Igreja sempre pensou e disse sobre a homossexualidade e o casamento católico.
Talvez todos tenham razão. Lendo o documento, que me perece que procura um equilíbrio entre o rigor da doutrina (como deve ser) e o acolhimento pastoral (como as pessoas são), podem-se apontar algumas ambivalências. É mesmo possível abençoar pares homossexuais sem danificar “o ensinamento perene da Igreja sobre o Matrimónio”? Quando um par homossexual pede uma bênção, não está precisamente a desejar ser aceite como é, como vivendo a afetividade e sexualidade de um modo condenado pela Igreja? “De um ponto de vista estritamente litúrgico, a bênção requer que aquilo que se bendiz seja conforme à vontade de Deus manifestada nos ensinamentos da Igreja”, diz a declaração no n.º 9, mesmo que pouco depois adiante que “existe o perigo de que um gesto pastoral, tão querido e difundido, se submeta a demasiados requisitos morais prévios que, sob a pretensão de controlo, poderia eclipsar a forma incondicional do amor de Deus, em que se baseia o gesto da bênção” (n.º 12). E, mais para o final, afirma que os que pedem a bênção “não pretendem a legitimidade do seu próprio status, mas rogam que tudo o que há de verdadeiro, bom e humanamente válido nas suas vidas e relações, seja investido, santificado e elevado pela presença do Espírito Santo” (n.º 31). Mesmo que assim seja, isto é, que quem pede a bênção não pretende a legitimidade do status, o que é de duvidar, está a confusão assumida, porque tal status ilegítimo dá coisas santificáveis.
O documento ainda há de fazer correr muita tinta. Compreende-se melhor se olharmos para um dos princípios propostos na “Evangelli Gaudium”, que diz “A realidade é mais importante do que a ideia”: “Existe também uma tensão bipolar entre a ideia e a realidade: a realidade simplesmente é, a ideia elabora-se. Entre as duas, deve estabelecer-se um diálogo constante, evitando que a ideia acabe por separar-se da realidade. É perigoso viver no reino só da palavra, da imagem, do sofisma. Por isso, há que postular um terceiro princípio: a realidade é superior à ideia. Isto supõe evitar várias formas de ocultar a realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os projetos mais formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem bondade, os intelectualismos sem sabedoria” (n.º 231).
Ora, a realidade é que há casais homossexuais que são católicos e vivem em amor e fidelidade e não sentem como pecado a vida que assumem.
A realidade é que homossexualidade deixou de ser “desordem” para a Associação Americana de Psiquiatria em 1973 e deixou de ser doença mental para a OMS em 1990, mas continua a ser para a Igreja algo “intrinsecamente desordenado”. “Evitar-se-á, em relação a eles [homossexuais] – diz o Catecismo da Igreja Católica (CIC) – qualquer sinal de discriminação injusta” (sobram as descriminações justas, depreende-se). Mas, quanto à vida afetiva e sexual, “as pessoas homossexuais são chamadas à castidade” (n.ºs 2358 e 2359). Se não aplicarmos os “purismos angélicos” do n.º 231 da EG a estes parágrafos do CIC, não os podemos aplicar a mais nada.
A “Fiducia supplicans”, no meu ponto de vista, é uma declaração confusa e contraditória. Diz que não quer alterar “o ensino perene da Igreja sobre o Matrimónio” (se o ensino é mesmo “perene” desde os tempos apostólicos ou só é perene a partir do segundo milénio e apenas numa parte da cristandade, é muito questionável), mas não o harmoniza com a realidade dos casais homossexuais católicos. Não seria esse o objetivo, é certo. Mas a bênção, ainda que recatada e sem paramentos, é uma dissonância. Ainda bem. Talvez seja um bom motivo para começarmos a falar de homossexualidade, catolicismo e matrimónio.
Jorge Pires Ferreira