domingo, 7 de janeiro de 2024

De 2023 para 2024: tensões e esperança

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias 

Havia regiões nas quais, na noite de passagem de ano, tudo o que é velho - roupas, pratos, mobília - ia pela janela fora para a rua. E também é sabido que nessa noite há licenças ao nível do álcool e outras que normalmente não são admitidas. É um pouco como se, retomando, agora de modo secularizado, os mitos cosmogónicos, se instalasse o caos primitivo, para em seguida, como fizeram os deuses in illo tempore, ser reposta a ordem do cosmos.
Perante um ano novo que está aí à nossa frente, os sentimentos misturam-se: perplexidades, entusiasmo, dúvidas, expectativas, temores, esperança... Que é que nos reserva o novo ano: para mim, para a minha família, para os meus amigos, para o país, para a Europa, para o mundo? Será melhor, será pior que o ano que passou? Querendo ir mais fundo, até somos tentados a pensar que é igual, que tudo se repete: morre um ano, surge outro ano, na roda eterna do mesmo... Mas não é assim. Nunca houve na história de cada um de nós, na História do país, na História da Europa, na História da Humanidade, na História do mundo, com uns 14 mil milhões de anos, um ano como este, o de 2024, que acaba de surgir. Ele está aí, novo, pela primeira vez, como criança acabada de nascer. E, exactamente como a criança, está aí com confiança.
No entanto, as tensões e perplexidades avolumam-se. Talvez nunca a Humanidade tenha estado perante ameaças tão avassaladoras. Quando olhamos para o passado, não somos piores. O que se passa é que nunca a Humanidade teve tanto poder de autodestruição: pense-se no armamento atómico, nas alterações climáticas, nas novas tecnologias, concretamente na Inteligência Artificial, certamente com imensas possibilidades vantajosas, mas levantando também perguntas gigantescas…
Por estes dias, reflectindo sobre o ano que passou, fizemos um balanço da nossa vida e pensámos naqueles que, familiares e amigos, se nos foram, “partiram”, já cá não estão, e temos saudades, fazem-nos falta. Nesse balanço da nossa vida e da vida da sociedade não se ergueu a necessidade de pensar mais? Não constatamos, de facto, que se instalou a banalidade rasante, esquecendo o essencial? Afinal, de que vale dominar o mundo inteiro, se nos autodestruímos?
Aliás, quem se lembra de que 2024 é-o por referência à data do nascimento de Jesus? 
Agora, é preciso reflectir no que aí vem. Afinal, que queremos fazer de bom para nós, para a família, para a Humanidade? Olhando para o país, vai haver eleições, e como avançaremos quando pensamos na situação da Saúde, da Educação, da Justiça, da corrupção, nas manchas intoleráveis de pobreza, e quando, depois de milhões e mais milhões e mais milhões... de euros da União Europeia, continuamos na cauda da Europa? E vai haver eleições na Europa, e o que vai acontecer, pensando concretamente nas eleições dos Estados Unidos da América? E as eleições em Taiwan, com todas as consequências? No contexto de um mundo cada vez mais multipolar, com ambições várias de domínio imperial global, com mais de dois terços da Humanidade a sofrer de desigualdade crescente e de pobreza, que vai acontecer neste nosso mundo insano, com guerras brutais em curso e a ameaça da catástrofe?
Somos cada vez mais interdependentes e, por isso, como repete o Papa Francisco, ou nos salvamos todos ou nos perdemos todos. Assim, os países celebram o Dia da Independência Nacional; pergunta-se, na linha da sugestão do filósofo Peter Sloterdijk: não é urgente um pacto global, assinado por todos, sobre a Dependência Global, com um dia no ano para se celebrar, sempre com mais consciência, precisamente o Dia da Dependência Global?
De qualquer modo, avançamos na esperança, porque o ser humano é um ser constitutivamente esperante, apesar da dureza e brutalidade toda com que a vida nos foi confrontando. Como escreveu Nelson Mandela: “A esperança é uma arma ponderosa e nenhum poder no mundo pode privar-me dela.” Sim. Por que é que os homens e as mulheres, apesar de todos os fracassos, horrores, sofrimentos e cinismos, ainda não desistiram de lutar e de esperar? Por que é que continuamos a ter filhos? Por que é que depois de guerras destruidoras e terramotos devoradores, recomeçamos sempre de novo? Perguntava, com razão, o célebre teólogo Johann Baptist Metz: “Por que é que recomeçamos sempre de novo, apesar de todas as lembranças que temos do fracasso e das seduções enganadoras das nossas esperanças? Por que é que sonhamos sempre de novo com uma felicidade futura da liberdade”, embora saibamos que os mortos não participarão nela? Por que é que não renunciamos à luta pelo Homem novo? Por que é que o Homem se levanta sempre de novo, “numa rebelião impotente”, contra o sofrimento que não pode ser sanado? “Por que é que o Homem institui sempre de novo novas medidas de justiça universal, apesar de saber que a morte as desautoriza outra vez” e que já na geração seguinte de novo a maioria não participará nelas? Donde é que vem ao Homem “o seu poder de resistência contra a apatia e o desespero? Por que é que o Homem se recusa a pactuar com o absurdo, presente na experiência de todo o sofrimento não-reparado? Donde é que vem a força da revolta, da rebelião?”
Neste movimento incontível, ilimitado, do combate da esperança, pode ver-se um aceno do Infinito, um sinal de Deus. Como se não cansava de repetir o ateu religioso Ernst Bloch: “Onde há esperança, há religião.” Aliás, quem se lembra de que 2024 é-o por referência à data do nascimento de Jesus?



Padre e professor de Filosofia.

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