no Diário de Notícias
O Memorial, fé e razão, a aposta
3. Pascal entregou-se totalmente a Deus e doou os seus bens aos pobres. Em 1654 teve uma experiência extraordinária, mística, com o Deus vivo, de tal modo marcante que a descreveu e guardou escrita em segredo cosida no forro do casaco, tendo sido descoberta depois da morte por um criado. É o famoso Memorial:
"Ano da graça de 1654, Segunda-Feira, 23 de Novembro, dia de São Clemente, papa e mártir, e de outros no martirológio. Véspera de São Crisógono, mártir, e outros. Das dez horas e meia da noite, mais ou menos, até mais ou menos meia-noite e meia. FOGO. Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob, não dos filósofos e dos sábios. Certeza. Certeza. Sentimento. Alegria. Paz. DEUS de Jesus Cristo. Deum meum et Deum vestrum (Meu Deus e vosso Deus). "O teu Deus será o meu Deus". Esquecimento do mundo e de tudo, menos de Deus. Ele não se encontra senão pelas vias ensinadas no Evangelho. Grandeza da alma humana. "Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu conheci-te". Alegria, alegria, alegria, lágrimas de alegria. Separei-me dele. Dereliquerunt me fontem aquae vivae. Meu Deus, abandonar-me-eis? Que eu não me separe de ti eternamente. Esta é a vida eterna: que te conheçam a ti, único Deus verdadeiro, e aquele que enviaste, Jesus Cristo. Jesus Cristo, Jesus Cristo. Eu separei-me dele, fugi dele, reneguei-o, crucifiquei-o. Que eu nunca me separe dele. Ele só se conserva pelas vias ensinadas no Evangelho: Renúncia total e doce. Submissão total a Jesus Cristo e ao meu director. Alegria eterna por um dia de exercício na terra. Non obliviscar sermones tuos. Ámen."
Pascal foi sempre crente, mas entendendo cada vez mais profundamente que só em Deus, no Deus vivo, o Deus de Jesus, o homem encontra a resposta para a sua tensão constitutiva e a verdade e o sentido pleno para a existência.
Foi uma experiência mística. Mas a fé tem de ser acompanhada pela razão, como diz em muitos textos. "Conhecemos a verdade não só pela razão, mas também pelo coração. "Miséria do homem sem Deus. Felicidade do homem com Deus." "Os homens têm desprezo pela Religião. Têm-lhe ódio e temem que seja verdadeira; para curar isso, é preciso começar por mostrar que a Religião não é contrária à razão, mas venerável, e digna de respeito. Torná-la em seguida amável." "Submissão e uso da razão: é nisso que consiste o verdadeiro cristianismo." "Se tudo submetermos à razão, a nossa religião nada terá de misterioso e de sobrenatural. Se contrariarmos os princípios da razão, a nossa religião será absurda e ridícula." "Há poucos cristãos verdadeiros. Digo o mesmo na questão da fé. Há muitos que crêem, mas por superstição. Há muitos que não crêem, mas por libertinagem, há poucos entre uns e outros. "A piedade é diferente da superstição."
Pensando concretamente nos libertinos, deixou o famoso pari (aposta). Como reza a aposta pascaliana em termos simples? Cito.
"Deus existe ou não existe. Para que lado nos inclinaremos? A razão não o pode determinar: há um caos infinito que nos separa. Na extremidade dessa distância infinita, joga-se um jogo em que há-de sair cruz ou coroa. Em que apostareis? É preciso apostar. Não é coisa que dependa da vontade. Já estais embarcados. Que escolha fareis? Já que é preciso escolher, vejamos o que menos vos interessa. Tendes duas coisas a perder: a verdade e o bem; e duas coisas a empenhar: a vossa razão e a vossa vontade, o vosso conhecimento e a vossa bem-aventurança; e a vossa natureza tem de evitar duas coisas: o erro e a miséria. A vossa razão não será mais lesada por escolherdes uma coisa de preferência à outra, pois é forçoso escolher. Eis um ponto assente. Mas a vossa felicidade eterna? Ponderemos o ganho e a perda, escolhendo a cruz que é Deus. Ponderemos estes dois casos: se ganhardes, ganhareis tudo; se perderdes, não perdereis nada. Apostai, pois, que Deus existe, sem hesitação. Há uma eternidade de vida e de felicidade. Há nisto uma infinidade de vida inteiramente feliz a ganhar, uma probabilidade de ganhar contra um número finito de probabilidades de perder, e o que jogais é finito. A nossa proposição tem por si uma força infinita, quando há o finito a arriscar num jogo onde há iguais probabilidades de ganho ou perda, e o infinito a ganhar. Que mal vos poderá acontecer tomando tal partido?" Mesmo em relação a esta vida terrena, o que perdereis? Nada. Pelo contrário, ganhais. Porquê? "Sereis fiel, honesto, humilde, reconhecido, benfazejo, amigo, homem de bem, sincero, amigo de verdade. Com efeito, não ficareis no meio dos prazeres empestados, com a glória, com as delícias, mas não tereis outras delícias? Digo-vos que ganhareis até nesta vida, e que, a cada passo que derdes neste caminho, vereis tanta certeza de ganho, e tanta nulidade naquilo que arriscais, que reconhecereis, por fim, ter apostado numa coisa certa, infinita, pela qual nada haveis dado."
"Oh! Este raciocínio transporta-me, arrebata-me, etc. " "Se vos agrada e vos parece forte, sabei que ele é feito por um homem que se pôs de joelhos antes e depois, para pedir ao Ser infinito e sem partes, ao qual submete tudo o que é seu, que submeta também o que é vosso para vosso próprio bem e para a sua glória, e que assim a força se concilie com essa baixeza" (de ajoelhar).
A sua última oração, antes de morrer: "Que Deus nunca me abandone!"
Bom Natal!
Anselmo Borges no DN
Padre e professor de Filosofia