sábado, 5 de agosto de 2023

Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e sempre nova

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias




Naquela tarde, foi o esplendor do pôr-do-sol! O horizonte em chamas, o Sol que baloiça no horizonte ao mesmo tempo que brinca e se banha no mar e se despede... E se nunca mais voltasse?!... Mas, na manhã seguinte, cá estava outra vez, resplandecente, e novo, novo como na manhã primeira do mundo. Tudo está reconciliado, tudo é perfeito, não há cisão de sujeito e objecto. E é tal o êxtase que até podíamos morrer. Porque aí não há morte. Tudo é apenas um instante. Mas trata-se daquele instante em que a eternidade tange o tempo, e, aí, nesse instante, o que há é a pré-vivência da vida eterna, plena.
Também há os rostos. E o que há de mais "instante" do que um rosto? Nele, o que vem é o Infinito a visitar-nos. Como alguém escreveu: "Cada um, único, é um mistério. Em síntese, o mistério de Deus."
Depois, há a arte. Que vai do canto à poesia e à escultura, da dança à pintura e à música.
O poeta abre as palavras, descobre a alma das palavras, põe-nas a cantar, e com o seu canto recria o mundo.
Pela dança e o seu ritmo, o corpo ergue-se acima do peso, é como se fugisse à lei da gravidade, e isso é já a antecipação do que São Paulo chamou paradoxalmente o "corpo espiritual".
Na contemplação da Virgem Branca, em Toledo, com aquele Menino a sorrir para o enlevo da Mãe, fica-se a saber que a pedra bruta é mais do que ela e quer ser mais: divina!
Com o par de As botas velhas com atacadores, de Van Gogh, em Amesterdão, percorremos os caminhos todos da vida e do mundo, o seu cansaço, e sobretudo a sua esperança. Lá, lá no termo do caminho, deve morar um reino e a perfeição.
O que se não pode dizer, nem analisar, diz-se na música. A música diz o indizível. Ela é súplica pela beleza e já a sua presença e oferta.
Na beleza e pela beleza, transcendemo-nos, e somos para lá do zoológico. A comida, a bebida, o sexo dão satisfação: preenchem necessidades. Mas o belo não é necessário, é um luxo, é uma graça: para que é que serve? Como disse Kant, o prazer que vem do belo é o único realmente desinteressado e livre: estamos interessados nele desinteressadamente. E, embora o belo deva agradar universalmente, não sabemos dar a razão precisa por que algo é belo.
O belo também não se confunde exactamente com o bom. Mas deve haver uma relação entre o belo e o bom, dita até na etimologia de belo e bonito: bonus, bonullus, e os gregos associavam o belo e o justo harmonioso. O belo abre a porta do que habitualmente não se vê, nem se ouve. Mas, quando se viu o invisível e se ouviu o inaudível e a sua beleza, tudo vem a uma nova luz e se transfigura. A partir daí e dessa reconciliação, somos atirados para a transformação do mundo. É então que às nossas "acções boas" o Evangelho chama-as, no original grego, "acções belas". Desse modo, este mundo torna-se outro, sem ser o outro mundo. Por isso, perante o belo, exclamamos desde a raiz de nós: Como é bom estar aqui! É assim que devia ser! Sempre!
Até quando a arte nos confronta com o monstruoso e dilacerante, ainda é por causa da aspiração à harmonia. Porque "a beleza é uma promessa de felicidade", na expressão de Stendhal, comprometemo-nos "até ao fim com o mal, o falso e o feio da realidade ainda não reconciliada em que vivemos", como diz o filósofo Fernando Savater. "Na denúncia do que falta, vê-se contra a luz a possibilidade futura daquilo que poderia ser a plenitude".
No belo, tornamo-nos vizinhos imediatos do próprio Transcendente. Como escreveu George Steiner, "a poesia, a arte e a música são os meios portadores desta vizinhança". Nomeadamente, a música é inseparável do sentimento religioso: "Ela foi durante muito tempo, continua a ser hoje, a teologia não escrita dos que não têm ou recusam qualquer crença formal".
O escultor José Rodrigues fazia o favor de ser meu amigo, a ponto de me chamar "meu irmão" e que enquanto ele fosse vivo seria ele a fazer as capas dos meus livros, o que para mim e os leitores foi uma bênção. Falámos muitas vezes e perguntava-me: "Anselmo, quando morrermos, para onde vamos?" E também me dizia, com imensa força: "Se Deus fosse mesmo meu amigo, punha-me tinta a sair dos dedos para eu poder pintar directamente." Quando ele morreu, passei pelo crematório, para uma despedida. À saída, estava um jornalista que sabia da nossa amizade e eu falei-lhe disto e, perante a pergunta: "Quando morrermos para onde vamos?", ele próprio perguntou-me: "Que acha? José Rodrigues para onde foi?" E eu respondi-lhe, sem hesitar: "Foi para a Beleza, que é outro nome de Deus. Para onde havia de ir?"
Não foi assim que Platão se referiu ao Divino? Ele é o Bem, a Beleza. Sempre me impressionou que mesmo pessoas simples perceberam esta relação íntima entre o bem e o belo: muitas vezes ouvi mães a dizerem ao filho, que fez uma asneira, algo de mal: "Filho, não faças isso, é feio". Os Evangelhos, repito, que foram escritos em grego, quando se referem ao mandamento de Jesus: "Fazei boas obras", escrevem: "Kalá érga: obras belas".
Tudo a apontar para a Beleza, outro nome de Deus. Lá está Santo Agostinho; em As Confissões; relatando a sua conversão, voltando a Deus, escreveu numa das orações mais belas de sempre: "Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e sempre nova... Tarde te amei."
Dostoievski também nos ensinou: "A beleza salvará o mundo". Ela realiza, como explicou o teólogo Leonardo Boff, a sua origem do sânscrito: Bet-El-Za, que quer dizer: "O lugar onde Deus brilha."

N. B. Fica para a semana um balanço da JMJ.

Anselmo Borges no Diário de Notícias

Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue