no Diário de Notícias
Entretanto, é essencial, vital, evitar o mal evitável, pelo qual somos directa ou indirectamente responsáveis. E já nem me refiro aos horrores incríveis da guerra, como a gente vê agora na Ucrânia, mas a coisas simples: cumprir o nosso dever, impedindo males e contribuindo para a alegria de outros; por vezes, uma simples palavra basta.
Ou Deus quer tirar o mal do mundo, mas não pode; ou pode, mas não o quer tirar; ou não pode nem quer; ou pode e quer. Se quer e não pode, é impotente; se pode e não quer, não nos ama; se não quer nem pode, não é o Deus bom e, além disso, é impotente; se pode e quer - e isto é o mais seguro -, então donde vem o mal real e porque é que não o elimina?"
Este é o famoso dilema de Epicuro: ou Deus pôde evitar o mal, mas não quis, e então não é bom; ou quis, mas não pôde, e então não é omnipotente.
Quando se considera o dilema, é preciso ser consequente. De facto, não é legítimo invocar o mistério de modo cego. O mistério é, pela sua própria natureza, supraracional ou transracional, mas não pode ser contra a razão. A primeira luz que temos é a da razão e, concretamente depois da modernidade, quando a razão alcançou a sua maioridade autónoma, não se lhe pode ser infiel. Isto significa, no caso pendente, que, se Deus pudesse criar o mundo sem mal e o não tivesse feito, não poderíamos acreditar nele, já que seria um Deus que não merece o nosso crédito nem a nossa confiança. Qual é o pai ou a mãe que, se pudesse evitar o mal do filho, o não faria? Que diríamos de alguém que, podendo aliviar as dores de outra pessoa, o não fizesse? Não consideraríamos essa pessoa sádica? Deus não pode ser menos bom do que os seres humanos.
Assim, ou há alguma falha no dilema de Epicuro ou só resta mesmo a alternativa do ateísmo. O que falha é o pressuposto de que é possível um mundo perfeito. Mas precisamente um mundo finito perfeito é o que não é possível, pois é contraditório. Já Leibniz viu claramente que é a limitação do mundo que torna inevitável a existência do mal. Isto não significa que o mundo seja mau em si mesmo, mas que, dada a sua finitude, inevitavelmente está afectado pela negatividade, seguindo-se daí os males concretos, físicos e morais. Como escreve o filósofo da religião Andrés Torres Queiruga - e a filosofia e a teologia terá sempre essa dívida para com ele -, um mundo finito "não pode existir sem que no seu funcionamento e realização apareça também o mal". Portanto, isto também não significa que Deus seja impotente ou mau. O mesmo filósofo dá um exemplo: a mãe, matemática famosa, não pode ensinar ao seu menino de quatro anos trigonometria ou a teoria da relatividade. Teoricamente, ela sabe e pode ensinar e ama o filho, mas este, dada a sua tenra idade, não é ainda capaz de receber as lições. Deus é omnipotente e infinitamente bom, mas, quando se fala em omnipotência, ela não pode ser entendida de modo arbitrário, infantil e abstracto: por exemplo, Deus não pode cometer suicídio nem fazer com que dois mais dois não sejam quatro nem criar um mundo finito perfeito... Não pode criar pessoas livres - já pensámos suficientemente no milagre da liberdade? - e, ao mesmo tempo, por causa da finitude, evitar o seu mau uso. Já São Paulo se queixava: "Ai de mim, que sou um homem desgraçado, pois faço o mal que não quero e deixo de fazer o bem que quero".
Surge então a objecção de fundo. Como pode Deus dar-nos a salvação plena que esperamos depois da morte, se continuaremos finitos e precisamente a finitude é que torna inevitável a existência do mal? A resposta desdobra-se. Em primeiro lugar, é preciso compreender que este mundo é finito, mas perfectível. O mundo e as pessoas nele não apareceram fixos, acabados, já feitos. Pense-se, por exemplo, no que seria cada um de nós aparecido no mundo já adulto. Alguém é capaz de pensá-lo? Portanto, tanto o mundo como as pessoas estamos em processo de nos fazermos e realizarmos. O tempo pertence constitutivamente à estrutura do ser finito, de tal modo que se deve mesmo dizer que o tempo é o modo como o ser finito se realiza. Depois, o crente é aquele que espera - e não é verdade que, no que se refere às respostas às questões últimas, todos (crentes religiosos, ateus ou agnósticos) se colocam num plano de fé? -, após o tempo do crescimento e da maturação na história, a salvação plena por dom gratuito do Deus que lhe vem ao encontro. Então, já para lá dos limites da História, "não se pode afirmar que seja contraditório que, ao intensificar-se a presença criadora fora dos limites do espaço e do tempo, a criatura participe, de algum modo, com tal força na infinitude divina, que resulte livre do mal", conclui Andrés Torres Queiruga.
De qualquer forma, só temos indícios que nos permitem esperar com razões. Immanuel Kant viu bem quando preveniu que estamos apetrechados para conhecer dentro do espaço e do tempo. A morte é o abalo total precisamente porque nos arranca do espaço e do tempo, deixando-nos, por isso, em total silêncio. Quando se trata de representações para lá do espaço e do tempo cósmicos, ficamos sem palavras.
O mal é o aguilhão contra a fé; assim: por um lado, a existência do mal põe a fé em sobressalto, mas, por outro, sem a fé em Deus, não há resposta para o abismo do mal. No processo de nos fazermos, é sensato e razoável acreditar e esperar em Deus que dará realização plena à aspiração de plenitude, constitutiva do ser humano.
Entretanto, é essencial, vital, evitar o mal evitável, pelo qual somos directa ou indirectamente responsáveis. E já nem me refiro aos horrores incríveis da guerra, como a gente vê agora na Ucrânia, mas a coisas simples: cumprir o nosso dever, impedindo males e contribuindo para a alegria de outros; por vezes, uma simples palavra basta.
Anselmo Borges no Diário de Notícias
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia