sábado, 17 de junho de 2023

A FÉ EM DEUS E O MAL

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

Entretanto, é essencial, vital, evitar o mal evitável, pelo qual somos directa ou indirectamente responsáveis. E já nem me refiro aos horrores incríveis da guerra, como a gente vê agora na Ucrânia, mas a coisas simples: cumprir o nosso dever, impedindo males e contribuindo para a alegria de outros; por vezes, uma simples palavra basta.

Ou Deus quer tirar o mal do mundo, mas não pode; ou pode, mas não o quer tirar; ou não pode nem quer; ou pode e quer. Se quer e não pode, é impotente; se pode e não quer, não nos ama; se não quer nem pode, não é o Deus bom e, além disso, é impotente; se pode e quer - e isto é o mais seguro -, então donde vem o mal real e porque é que não o elimina?"
Este é o famoso dilema de Epicuro: ou Deus pôde evitar o mal, mas não quis, e então não é bom; ou quis, mas não pôde, e então não é omnipotente.
Quando se considera o dilema, é preciso ser consequente. De facto, não é legítimo invocar o mistério de modo cego. O mistério é, pela sua própria natureza, supraracional ou transracional, mas não pode ser contra a razão. A primeira luz que temos é a da razão e, concretamente depois da modernidade, quando a razão alcançou a sua maioridade autónoma, não se lhe pode ser infiel. Isto significa, no caso pendente, que, se Deus pudesse criar o mundo sem mal e o não tivesse feito, não poderíamos acreditar nele, já que seria um Deus que não merece o nosso crédito nem a nossa confiança. Qual é o pai ou a mãe que, se pudesse evitar o mal do filho, o não faria? Que diríamos de alguém que, podendo aliviar as dores de outra pessoa, o não fizesse? Não consideraríamos essa pessoa sádica? Deus não pode ser menos bom do que os seres humanos.
Assim, ou há alguma falha no dilema de Epicuro ou só resta mesmo a alternativa do ateísmo. O que falha é o pressuposto de que é possível um mundo perfeito. Mas precisamente um mundo finito perfeito é o que não é possível, pois é contraditório. Já Leibniz viu claramente que é a limitação do mundo que torna inevitável a existência do mal. Isto não significa que o mundo seja mau em si mesmo, mas que, dada a sua finitude, inevitavelmente está afectado pela negatividade, seguindo-se daí os males concretos, físicos e morais. Como escreve o filósofo da religião Andrés Torres Queiruga - e a filosofia e a teologia terá sempre essa dívida para com ele -, um mundo finito "não pode existir sem que no seu funcionamento e realização apareça também o mal". Portanto, isto também não significa que Deus seja impotente ou mau. O mesmo filósofo dá um exemplo: a mãe, matemática famosa, não pode ensinar ao seu menino de quatro anos trigonometria ou a teoria da relatividade. Teoricamente, ela sabe e pode ensinar e ama o filho, mas este, dada a sua tenra idade, não é ainda capaz de receber as lições. Deus é omnipotente e infinitamente bom, mas, quando se fala em omnipotência, ela não pode ser entendida de modo arbitrário, infantil e abstracto: por exemplo, Deus não pode cometer suicídio nem fazer com que dois mais dois não sejam quatro nem criar um mundo finito perfeito... Não pode criar pessoas livres - já pensámos suficientemente no milagre da liberdade? - e, ao mesmo tempo, por causa da finitude, evitar o seu mau uso. Já São Paulo se queixava: "Ai de mim, que sou um homem desgraçado, pois faço o mal que não quero e deixo de fazer o bem que quero".
Surge então a objecção de fundo. Como pode Deus dar-nos a salvação plena que esperamos depois da morte, se continuaremos finitos e precisamente a finitude é que torna inevitável a existência do mal? A resposta desdobra-se. Em primeiro lugar, é preciso compreender que este mundo é finito, mas perfectível. O mundo e as pessoas nele não apareceram fixos, acabados, já feitos. Pense-se, por exemplo, no que seria cada um de nós aparecido no mundo já adulto. Alguém é capaz de pensá-lo? Portanto, tanto o mundo como as pessoas estamos em processo de nos fazermos e realizarmos. O tempo pertence constitutivamente à estrutura do ser finito, de tal modo que se deve mesmo dizer que o tempo é o modo como o ser finito se realiza. Depois, o crente é aquele que espera - e não é verdade que, no que se refere às respostas às questões últimas, todos (crentes religiosos, ateus ou agnósticos) se colocam num plano de fé? -, após o tempo do crescimento e da maturação na história, a salvação plena por dom gratuito do Deus que lhe vem ao encontro. Então, já para lá dos limites da História, "não se pode afirmar que seja contraditório que, ao intensificar-se a presença criadora fora dos limites do espaço e do tempo, a criatura participe, de algum modo, com tal força na infinitude divina, que resulte livre do mal", conclui Andrés Torres Queiruga.
De qualquer forma, só temos indícios que nos permitem esperar com razões. Immanuel Kant viu bem quando preveniu que estamos apetrechados para conhecer dentro do espaço e do tempo. A morte é o abalo total precisamente porque nos arranca do espaço e do tempo, deixando-nos, por isso, em total silêncio. Quando se trata de representações para lá do espaço e do tempo cósmicos, ficamos sem palavras.
O mal é o aguilhão contra a fé; assim: por um lado, a existência do mal põe a fé em sobressalto, mas, por outro, sem a fé em Deus, não há resposta para o abismo do mal. No processo de nos fazermos, é sensato e razoável acreditar e esperar em Deus que dará realização plena à aspiração de plenitude, constitutiva do ser humano.
Entretanto, é essencial, vital, evitar o mal evitável, pelo qual somos directa ou indirectamente responsáveis. E já nem me refiro aos horrores incríveis da guerra, como a gente vê agora na Ucrânia, mas a coisas simples: cumprir o nosso dever, impedindo males e contribuindo para a alegria de outros; por vezes, uma simples palavra basta.

Anselmo Borges no Diário de Notícias 

Padre e professor de Filosofia.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue