no Diário de Notícias
Anselmo Borges |
Há um católico, que pessoalmente não conheço, mas muito preocupado com os dogmas e que frequentemente me consulta sobre eles. Telefonou-me recentemente a perguntar: "Como cristãos podemos e devemos odiar o diabo? É que Jesus disse que devemos amar os inimigos..." Disse-lhe que o problema não se põe, pois o diabo não existe. Ele: "Mas está na Bíblia...".
Dado o interesse que o diabo desencadeia -- reuniram-se ainda há pouco tempo em Roma 241 alunos, vindos de 42 países, para um curso para futuros "expulsadores de demónios" --, volto ao tema, retomando, porque facilita a reflexão, uma conversa que tive há anos na televisão com a jornalista Fátima Lopes. Uma reflexão sobre o diabo, as possessões diabólicas, demoníacas, e os exorcismos.
Fica aí o essencial da conversa, prevenindo que nem sempre será literal.
Antes de mais, vamos começar por explicar às pessoas o que é isto do exorcismo.
O exorcismo parte do princípio de que há diabo e que o diabo, por vezes, se mete dentro de uma pessoa.
Atormenta as pessoas.
Não atormenta só. Mete-se mesmo dentro de uma pessoa e então vem o padre, e só pode ser um padre que esteja nomeado pelo bispo da diocese para isso, para expulsar, tirar o diabo de dentro da pessoa.
Dito isto, se me pergunta se eu acredito nisso, não, não acredito.
Mas não acredita que o diabo possa entrar para dentro da pessoa ou não acredita no próprio diabo?
Eu não acredito no diabo. O diabo é o contrário de símbolo, que significa reunião, coincidência (por exemplo, uma aliança no dedo de alguém remete para outra aliança no dedo de outra pessoa, o que significa que há entre elas uma união). A palavra diabo também vem do grego, diábolos, que significa aquele que separa, que dispersa, que desune, que traz zaragatas e problemas à vida. Se me pergunta se há diabo, eu não acredito. Aliás, o diabo não está no Credo, no Credo cristão. Jesus não pregou o diabo, Jesus pregou o Reino de Deus, o Evangelho, o Mistério último, que é Deus enquanto Pai/Mãe. O Evangelho é uma notícia boa, como diz a própria palavra, e felicitante, que traz alegria, felicidade, às pessoas. Há alguma notícia mais felicitante do que esta? Deus gosta de todas as pessoas, Deus gosta de si, de mim, foi isto que Jesus veio dizer. Deus ama-nos, ama todos os homens e mulheres, independentemente da sua condição, independentemente de se ser católico ou não, ama os ateus, ama-nos enquanto filhos e filhas, porque Ele é um Pai/Mãe querido e bom. Deus não nos criou para a sua maior honra e glória, não, Deus criou-nos por causa de nós, porque é amor e quer a nossa felicidade. Esta é uma notícia boa e felicitante, o Evangelho de Jesus.
Concordo plenamente consigo. Mas como, se na Igreja Católica, se fala às vezes, não todos, mas há quem fale, desta figura do diabo? É uma coisa extremamente intimidante; a figura do diabo põe-nos em sentido!
Claro. Veja, não é por acaso que o diabo até tem tantos nomes: é o Diabo, é o Satanás, é o Belzebu, é o Mafarrico, é o Lúcifer e, frequentemente, aquilo que eu noto é que há pessoas que não acreditam em Deus, mas acreditam no diabo. Eu assisti uma vez a um debate na Alemanha -- eu era muito amigo do maior biblista do século XX, católico, professor na Universidade de Tubinga, Herbert Haag, e também conheci pessoalmente um dos maiores filósofos do século XX, alemão também, Ernst Bloch, ateu. Eles tiveram uma vez um debate e veja: o padre a dizer que não havia diabo e o ateu a dizer que havia diabo. Já viu?
Fico baralhada!
É uma baralhada, é! Porque há muitas pessoas que não acreditam em Deus, no Deus de Jesus, por culpa também, às vezes, da Igreja e dos padres, que, em vez de pregarem o Evangelho, esta notícia boa e felicitante, em vez de pregarem o Evangelho, pregam o Disangelho, que é uma notícia má, uma notícia que não traz alegria e felicidade, mas traz medo. E muitas vezes prega-se o diabo por causa do medo; é que, se as pessoas tiverem medo, é mais fácil exercer o poder sobre elas e controlá-las. Ora, é preciso dizer a verdade: Jesus não pregou o diabo, pregou o Reino de Deus, a alegria do Evangelho.
Mas agora diga-me uma coisa, pois não podemos perder de vista este tema do exorcismo. O que me está a querer dizer é que, quando alguém, por exemplo, diz: eu tenho que chamar aqui um padre habilitado para fazer um exorcismo porque esta pessoa está possuída, porque esta pessoa está o que for, isto não faz sentido. Então, o que se passa com essa pessoa que tem comportamentos estranhos, desajustados, alucinações às vezes, coisas esquisitas? Se não é o diabo, é o quê?
Jesus ajudou as pessoas e é isso que a Igreja e os padres e todos devemos fazer: ajudar as pessoas e ajudá-las com os meios que nós temos.
Foi isso que Jesus pediu, não pediu outra coisa...
Exacto. Se Deus é amor, ama-nos, gosta de nós, devemos gostar de nós e uns dos outros, é isso, e ajudarmo-nos. De facto, muitas vezes, na altura, atribuía-se ao diabo doenças, depressões, que nós hoje sabemos que são do foro psicológico ou psiquiátrico e, portanto, devemos ajudar as pessoas mandando-as ao médico, mandando-as ao psiquiatra. É isso que é preciso fazer. Não se pode de modo nenhum continuar a atribuir ao diabo aquilo que efectivamente é de outra ordem. Nós hoje, felizmente, sabemos mais da mente, sabemos mais do cérebro...
Anselmo Borges no Diário de Notícias
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia