no Público
Já há 50 anos, havia quem chamasse a atenção para as resistências à mudança das congregações e ordens religiosas: ou se renovam ou morrem dentro de 150 anos. Bergoglio não se resigna.
1. O Papa Francisco tem um sentido muito agudo do tempo. Repete que já não estamos em regime de cristandade. Estamos a viver, não simplesmente uma época de mudanças, mas uma mudança de época e lembra a afirmação de Newman: “Aqui, na terra, viver é mudar.”
Não se trata de procurar a mudança pela mudança nem de seguir as modas, mas é preciso ir recuperando o tempo perdido. Assumiu a observação do cardeal Martini: a Igreja ficou atrasada 200 anos [1].
Já há 50 anos, havia quem chamasse a atenção para as resistências à mudança das congregações e ordens religiosas: ou se renovam ou morrem dentro de 150 anos. Bergoglio não se resigna.
Depois de todas as mudanças na preparação do Sínodo 2023-24, na passada quarta-feira, deu um salto histórico. Por muito que digam o contrário, podem manter a designação Sínodo dos Bispos, mas, de facto, é o Sínodo de Toda a Igreja: leigos – mulheres e homens – padres e bispos, religiosos e religiosas, jovens e adultos, todos com direito a voto, embora em proporções diferentes. Isto é apenas um começo, mas sem começar não se abre caminho.
Neste domingo de oração pelas vocações, o Papa insistiu que se trata sempre de vocações com carismas diferentes, mas todas para servir as comunidades e a missão de toda a Igreja a partir das periferias.
Neste contexto, um amigo manifestou-me a surpresa de ler uma mensagem do cardeal Tolentino de Mendonça a propósito da morte de uma monja dominicana, Mary John, OP (22/4/2023). Apesar de a notícia ser bastante desenvolvida, queria saber o que representava essa monja e as suas companheiras para um cardeal gastar o seu precioso tempo a evocar essa memória.
Pessoalmente, fiquei muito grato por, nesta quadra da Páscoa, não fosse esquecida a história de uma experiência monacal que tinha sido desenvolvida, durante quatro décadas, no Mosteiro de Santa Maria das Monjas Dominicanas, no Lumiar, em Lisboa.
Os jornalistas António Marujo e Manuel Rodrigues Vaz procuraram entender a originalidade desse fenómeno inovador de vida monacal [2]. Os seus testemunhos continuam um lugar de referência para quem desejar compreender por que razão o cardeal Tolentino não quis deixar passar em claro uma data que não pode apagar essa original forma de vida religiosa.
À medida que o tempo passa – diz Tolentino – “compreendemos melhor o alcance profético da opção que aquelas mulheres cristãs fizeram interpretando os desafios do Concílio Vaticano II, arriscando viver entre nós, de forma fraterna e criativa, um cristianismo de acolhimento, de relação e de futuro. Elas foram, como diz Jesus, ‘vinho novo em odres novos’ (Mateus 9,17). Escolheram habitar a fronteira não como um lugar de tensão e hostilidade, mas como uma prática humilde de escuta e de reconhecimento. Quando fecho os olhos, vejo-as às quatro sentadas à soleira daquilo que desejamos seja o futuro da Igreja e do mundo.”
2. O que será isso de viver na fronteira para desejar que seja esse o futuro da Igreja e do mundo?
Num Capítulo Geral dos Dominicanos, insistiu-se muito que os lugares da pregação eram as fronteiras, as diversas fronteiras da vida humana social e cultural. Mas não se pode pregar nas fronteiras e viver em quadros institucionais intocáveis. Daí, a importância de uma vida democrática no interior da Igreja sempre em reforma.
As Constituições dos diferentes ramos da vida dominicana são revistas periodicamente. A pregação na fronteira exige viver no que nunca tinha sido experimentado. S. Domingos fundou a Ordem dos Pregadores começando pelas mulheres, chamando-lhes “santa pregação” (1206). Romper com certas formas de clausura não estava, portanto, em contradição com a vida monacal. Era uma evolução indispensável e que o Vaticano II possibilitou.
Como diz o cardeal Tolentino, “uma das preocupações das Monjas do Lumiar foi que a experiência que viviam se propagasse na diversidade dos itinerários, das formas de existência e das vocações. O mosteiro continuava para além dele mesmo. E, de facto, fizeram-nos a todos herdeiros de uma pergunta que se mantém em aberto: como continuar e multiplicar a beleza e a autenticidade do que ali se viveu?”.
Numa comunidade, as tarefas são divididas. Antes de ter sido recebida como monja, Mary John era tradutora em Itália, numa estrutura militar da NATO. Encarregada de anotar o itinerário do mosteiro, no horizonte internacional da Ordem Dominicana e do pulsar da Igreja, ajudava a ver que o caminho que ali se trilhava estava em sintonia com as raízes da experiência monástica, mas também com o presente. A sua competência como tradutora não foi desperdiçada. Tornou-se, até, uma das principais tradutoras de Yves Congar OP. O seu nome continua a figurar nas actuais edições inglesas e americanas da obra deste famoso teólogo e grande obreiro do Vaticano II.
Quando se pergunta “como continuar e multiplicar a beleza e a autenticidade do que ali se viveu?”, importa informar que não está tudo perdido. Os Encontros do Lumiar não foram apenas o momento da sua realização. Foram programados, ano após ano, não só com uma temática multifacetada, mas também com a exigência e o compromisso de que tudo fosse publicado. Frei Mateus Peres, frei José Augusto Mourão, o padre Tolentino e, sobretudo, a dedicação insubstituível das monjas garantiram que esse património possa continuar a ser visitado e estudado. Não conheço, em língua portuguesa, nada que se possa comparar aos itinerários espirituais, teológicos e pastorais destes encontros.
3. Os Encontros do Lumiar eram abertos a um público heterogéneo de crentes e não-crentes. Começavam com uma conferência, seguia-se um espaço muito belo de debate entre o público e os intervenientes, com tempo para o convívio, saboreando um chá e um bolo, e culminando com a celebração da Eucaristia. De facto, como já dissemos, o mosteiro continuava para além dele mesmo, na vida familiar e profissional dos participantes. Ajudavam a viver e a testemunhar o Evangelho em todas as fronteiras. Nestes encontros, as monjas possibilitavam as mais diversas formas de vida cristã. Elas e os programadores e frequentadores não constituíam um mundo à parte. Eram uma nova forma de viver numa Igreja aberta a muitos mundos, a muitas fronteiras.
Foram quatro décadas de uma grande variedade de experiências com o contributo de historiadores, de pessoas do cinema, do teatro, da literatura, da filosofia, das ciências, da exegese bíblica, de diversas expressões e buscas espirituais.
De facto, o cardeal Tolentino – um dos grandes intervenientes nos encontros dos últimos anos – foi testemunha que a vida da Igreja não está só na ilusão das grandes manifestações com os seus êxitos e fracassos. As grandes descobertas podem realizar-se numa espiritualidade encarnada na vida da cidade e não apenas no isolamento dos grandes mosteiros.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. Discurso do Papa Francisco à Cúria Romana, no Natal de 2019
[2] Manuel Rodrigues Vaz, O Mosteiro de Santa Maria das Monjas Dominicanas no Lumiar, in Triplov; António Marujo, 7Margens, 5/3/2019