segunda-feira, 3 de abril de 2023

PARALISAR A TEOLOGIA? (2)

Crónica de Bento Domingues 
no PÚBLICO

1. Por mero acaso, depois de publicada a crónica do passado domingo, com a declaração de João Paulo II “a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja”, deparei com um texto que eu tinha publicado em Agosto de 1994. A declaração papal era de Maio desse ano. Procurei responder-lhe sem a nomear.
Com efeito, em 1994, escrevi: “Não falta por aí quem diga – não eu – que o grande ministério das mulheres seria ou ocupar a Igreja ou abandoná-la. Creio que há algo de novo a fazer, tirando as conclusões certas da Lumen Gentium, n.º 10, onde se faz do sacerdócio comum a todos os baptizados o sacerdócio próprio da vida cristã (Rm 12,1), mas também onde acaba por ser neutralizado, ao valorizar de forma desequilibrada o chamado “sacerdócio” ministerial, deixando na sombra o principal. É a ambiguidade inerente a fórmulas de compromisso.
Talvez haja nisto tudo uma grande confusão. No Novo Testamento (NT), o vocabulário sacerdotal nunca é aplicado aos ministérios. E chegamos ao seguinte paradoxo: aqueles a quem o NT chama sacerdotes, nós não chamamos sacerdotes; aqueles a quem o NT não chama sacerdotes, chamamos nós sacerdotes.
No NT, o único sacerdote é Jesus Cristo e todos os cristãos, na medida em que participam da sua graça sacerdotal: “Vós sois a raça eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo da sua particular propriedade, a fim de que proclameis as excelências daquele que vos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa” (l Pd 2,9).
Os ministérios são serviços desse sacerdócio. Só nesse sentido indirecto podem ser chamados serviços sacerdotais, porque serviços prestados aos sacerdotes, aos baptizados (Lumen Gentium, n.º 28) [1].
Com o tempo, logo a partir do séc. II, voltou-se a utilizar, para os ministérios, o vocabulário sacerdotal do judaísmo e do paganismo que o NT procurou evitar.
Por isso, quando agora se diz que as mulheres não podem receber a ordenação sacerdotal, apetece-me dizer: ainda bem! A forma de que actualmente se reveste já estava a ser questionada na sua atribuição aos homens!
Sacerdote é Jesus Cristo, que deu e dá a sua vida por todos. Sacerdote é o povo fiel, que, pelo baptismo, entra nessa corrente vital, nesse dom.
O que urge saber é o seguinte: segundo as necessidades e as possibilidades actuais, quais serão os ministérios de homens ou de mulheres mais aptos para alimentar a vida cristã como dom permanente pela salvação do mundo?
Tenho para mim que o facto de se estar a impedir as mulheres de serem ordenadas sacerdotes vai obrigar a repensar tudo, tendo em conta não só o passado, mas também o presente e os séculos futuros.
Tenho para mim que, o facto de se estar a impedir as mulheres de serem ordenadas sacerdotes, vai obrigar a repensar tudo, tendo em conta não só o passado, mas também o presente e os séculos futuros
Não me parece muito interessante reproduzir, em feminino, modelos de animação e presidência das comunidades para a missão que já se encontram fora de prazo para os masculinos [2].

2. Entretanto, a teologia feminista, de várias tendências, foi ganhando terreno a ponto de ter conseguido direitos de cidadania, na própria Comissão Pontifícia Bíblica, A Interpretação da Bíblia na Igreja, com o título Abordagem feminista [3].
O Papa Francisco, a 3 de Abril de 2013, na segunda audiência-geral do seu pontificado, destaca que “as primeiras testemunhas da ressurreição são as mulheres”, sem tirar a conclusão que se impunha: “São elas as apóstolas dos apóstolos”. A 7 de Fevereiro de 2015, dirigindo-se ao Plenário do Dicastério da Cultura, sobre As culturas femininas: igualdade e diferença, o Papa declara que é tempo de as mulheres sentirem que não são hóspedes, mas plenamente participantes das várias esferas da vida social e eclesial. Adverte que é um desafio que não pode continuar a ser adiado. É urgente oferecer espaços às mulheres na vida da Igreja, favorecendo uma presença mais ampla e incisiva nas comunidades com maior envolvimento das mulheres nas responsabilidades pastorais.
Entre os espaços de actuação das mulheres, não esqueceu o seu papel na Teologia. Pediu à Comissão Teológica Internacional para incluir mais mulheres entre os seus membros, “porque pensam diferente dos homens e, por isso, também podem fazer uma teologia diferente”.
Em Novembro de 2022, o Papa deu uma entrevista à America – The Jesuit Review, publicada no dia 28 desse mês, em que reafirma claramente a sua oposição “à ordenação das mulheres pela Igreja Católica: a mulher não pode entrar nos ministérios porque o princípio petrino não o permite” [4]. Ao dizer isto, Francisco tinha presente a declaração de João Paulo II e receia provocar uma cisão na Igreja.
Esse receio não o impediu de nomear 17 mulheres muito qualificadas para várias funções, na reforma da Cúria romana, como já disse em crónica anterior. No entanto, a freira Nathalie Becquart, especialista em Eclesiologia e nomeada subsecretária-geral do Sínodo 2023-2024, disse: “Não basta que as mulheres ocupem posições de primeira linha no Vaticano. É o próprio mundo em crise que precisa realmente de liderança feminina.”

3. A Igreja existe para ser testemunha de Cristo, para evangelizar. Para isso, deve começar pela evangelização de si mesma. Se a Igreja não se evangelizar, continuará a ser uma peça de museu. Ao contrário, o que a actualiza continuamente é a evangelização de si própria. Tem necessidade de ouvir sem cessar aquilo em que deve acreditar, as razões da sua esperança e o mandamento novo do amor. A Igreja, que é Povo de Deus imerso no mundo, e não raro tentado pelos ídolos – muitos – deve ouvir sempre o anúncio das obras de Deus. Em síntese, significa que ela tem sempre necessidade de ser evangelizada, deve seguir o Evangelho, rezar e sentir a força do Espírito que transforma o coração [5].
Para a Igreja não se tornar uma peça de museu, tem de cultivar uma teologia do desassossego, isto é, do provisório sempre em transição, nunca satisfeita com o que já foi pensado, ao longo dos séculos [6].
A Igreja, a precisar sempre de reforma, nasceu e renascerá da intranquilidade dos debates. É preciso libertar a palavra e encorajar o pensamento. É preciso a escuta, mas também a ousadia de se dizer claramente o que se pensa [7].
Francisco é o advogado, desde a primeira hora, da participação alargada das mulheres na sociedade e na pastoral da Igreja. Vive, no entanto, limitado pela citada declaração exagerada de João Paulo II que tentou fixar, para sempre, o futuro da Igreja.

Frei Bento Domingues no Público

[1] Sobre esta questão o estudo exemplar continua a ser o de J.M.R. Tillard, O.P., La “qualité sacerdotale” du ministêre chrétien, NRT 5 (1973) 481·514).
[2] Frei Bento Domingues, O.P., Os Ministérios das Mulheres. Algumas interrogações, In Bíblica (série científica), II (1994) 3, 167-177
[3] Comissão Pontifícia Bíblica, A Interpretação da Bíblia na Igreja, 1993, pp. 77-80
[4] O princípio petrino vem do papel de São Pedro, ou do ensino da cátedra, garantindo a sua unidade externa através do primado.
[5] Cf. EN, 15, Audiência-geral do dia 22 Março 2023, www.vatican.va
[6] Cf. Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, p. 19, da edição original da Assírio & Alvim
[7] Cf. Domenico Marrone, In Settimana News, Publicado em 21/3/2023, na Pastoral da Cultura

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue