«Algas e peixe podre para enterrar, Iodo para impermeabilizar o fundo da regadeira, e aí está a comedoria que serviu de mantença ao milagre das Gafanhas – tapetes infinitos de verdura, alfobres de pão para a fome dos homens e de bandeiras floridas para voracidade dos bois ruminar nos invernos desolados...
Com enxadões desmedidos fazem surribas que vão ao centro da Terra! Nasce-lhe água sob os pés descalços, água salobra que pode meter medo à puerícia da novidade mas que, no final de contas, a acaricia com desvelos de ama de leite. E, só depois, é que vem a tarefa de incorporar, na terra remexida até ao tutano, o moliço que, com o suor adstringente do rosto, arrancam do fundo gordo dos canais e deixam ficar no areal da borda, durante o tempo necessário para lhe corrigir o tempero excessivo.
Vejo-os, como brinquedos, os moliceiros, a flutuar à flor das marolas, ou, preguiçosos, sobre o espelho das águas, e sinto o drama da terra faminta de matéria orgânica a escancarar a bocarra num esgar hiante para o trabalho duro destes homens obstinados que nunca desanimaram ante a negativa hostil da duna que, na sua nudez desoladora, nada prometia em troca.
A humanização da paisagem de Aveiro sugere qualquer coisa de actividade lúdica, de esforço manobrado pela mão da inocência criadora da infância que se compraz em regalar os olhos com o produto da sua energia. O pragmatismo, aqui, surge corroborado por uma moldura doirada de beleza e aconchegado pelo calor de uma visão que amacia o sensório.»
Frederico de Moura
Texto e foto da Revista Aveiro e o seu Distrito, N.º 5