no PÚBLICO
Existe, de facto, uma distância enorme
entre o que dizem as narrativas evangélicas
acerca do papel que Jesus atribuiu às mulheres
e a sua situação subalterna na Igreja desde há muito tempo.
1. A publicação do Relatório da Comissão Independente provocou uma Carta do Patriarcado de Lisboa que me pareceu adequada. Depois da conferência de imprensa da Conferência Episcopal Portuguesa (3/3/2023), as declarações posteriores de D. Manuel Clemente resultaram numa grande confusão. O bispo auxiliar de Braga, Nuno Almeida, secundado pelo padre Mário Rui Oliveira, canonista, que trabalha num dos tribunais do Vaticano, procuraram clarificar a situação ajustada à defesa das vítimas de abusos sexuais. Gostei muito de ler a longa exposição, bem documentada e articulada, do Jornal 7Margens do dia 6 de Março.
O Papa Francisco já tinha afirmado que a Igreja não pode esconder a tragédia dos abusos, quaisquer que sejam, e acrescenta que “pedir perdão é necessário, mas não é suficiente”.
Anselmo Borges perguntou, no DN (4/3/2023), Que Igreja tem futuro? “Torna-se cada vez mais claro que a Igreja precisa de uma conversão a fundo. Com a tomada de consciência da tragédia da pedofilia, fala-se de um sismo e impõe-se uma reconstrução desde os fundamentos: Jesus e o Evangelho.” É um texto que merece ser lido e divulgado na íntegra.
Também a liturgia deste domingo exige um retorno ao Evangelho sobre o papel das mulheres. Existe, de facto, uma distância enorme entre o que dizem as narrativas evangélicas acerca do papel que Jesus lhes atribuiu e a sua situação subalterna na Igreja desde há muito tempo.
Como demora tanto em lhes reconhecer um papel activo, na Igreja, equivalente ao papel que desempenham na sociedade, a todos os níveis, é fundamental não esquecer o que afirmou S. Paulo na Carta aos Gálatas: “Todos vós sois filhos de Deus em Cristo Jesus, mediante a fé; pois todos os que fostes baptizados em Cristo revestistes-vos de Cristo mediante a fé. Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus.” [1]
O que falta, a quem pretende manter as mulheres afastadas dos chamados ministérios ordenados, é compreender algo de absolutamente essencial: não há um baptismo cristão para homens e outro diferente para mulheres. Isto em relação ao fundamento de todos os itinerários da vida cristã. Sem falar, hoje, das narrativas sobre a ressurreição de Cristo, com os seus diferentes matizes, em que as mulheres recebem do Ressuscitado o encargo de evangelizar os apóstolos, que tinham abandonado o Mestre depois do que julgavam ser o fracasso da cruz, pode-se dizer que foram sobretudo elas que garantiram o futuro dos movimentos cristãos.
Quando se diz que Jesus não escolheu nenhuma mulher para o grupo dos 12 apóstolos, esquece-se algo muito mais significativo: escolheu mulheres para serem as apóstolas dos próprios apóstolos.
Por outro lado, no Dia Internacional da Mulher (8 de Março), foi apresentado na Santa Sé, um estudo internacional baseado em entrevistas a 17.200 mulheres católicas de 104 países diferentes, levado a cabo por uma equipa de investigadores australianos, coordenada pela teóloga e socióloga da religião Tracy McEwan, da Universidade de Newcastle e revelou que há “uma preocupação significativa com os abusos de poder cometidos por clérigos do sexo masculino e com os danos espirituais daí resultantes”. [2]
2. S. João oferece-nos, na liturgia de hoje, um texto com tantos aspectos e dimensões que merece uma atenção especial, para compreender a própria essência da novidade do culto cristão, num contexto em que essa revelação servia, não só para judeus e samaritanos, mas para todos os tempos, lugares, culturas e religiões.
Os Evangelhos realçam a inimizade entre judeus e samaritanos. Conta S. Lucas que, como estavam a chegar os dias de ser levado deste mundo, Jesus dirigiu-se resolutamente para Jerusalém e enviou mensageiros à sua frente. Estes puseram-se a caminho e entraram numa povoação de samaritanos, a fim de lhe prepararem hospedagem. Mas não o receberam, porque ia a caminho de Jerusalém. Vendo isto, os discípulos Tiago e João disseram: “Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma? Mas Ele, voltando-se, repreendeu-os. E foram para outra povoação.” [3]
No Evangelho segundo S. João, para ofender alguém, bastava chamar-lhe samaritano: “Quem de vós pode acusar-me de pecado? Se digo a verdade, porque não me acreditais? Quem é de Deus escuta as palavras de Deus; vós não as escutais, porque não sois de Deus. Os judeus replicaram-lhe: ‘Não temos nós razão ao dizer que és um samaritano e que tens demónio?’ Respondeu Jesus: ‘Eu não tenho demónio. Eu honro o meu Pai, ao passo que vós me injuriais’.” [4]
Esta inimizade tinha uma longa e complicada história. Os samaritanos são um pequeno grupo étnico-religioso originários da Samaria. Neste momento, um estudo de 2019, produzido pela comunidade samaritana, estima o seu número em 820 pessoas que habitam no distrito de Holon em Telavive e Nablus na Cisjordânia.
3. Pode parecer um anacronismo falar de um povo que parece que já não pesa nem na política nem na religião. No entanto, nos Evangelhos, essa referência tem uma significação de alcance mundial para os nossos tempos, tanto a nível religioso como político.
Existem duas narrativas. Uma de S. Lucas, onde se fala de um personagem que ficou, até aos nossos dias, como o que deve ser um comportamento ético, sem invocar nenhum princípio moral ou religioso, a chamada ética samaritana [5]. Não é dessa parábola que me vou ocupar.
Uma segunda narrativa que me interessa hoje: é a longa e célebre conversa entre Jesus e a samaritana que não posso reproduzir aqui [6].
Jesus e os discípulos dirigiam-se para Jerusalém e não houve conflito. Enquanto os discípulos foram arranjar alguma coisa para comer – era meio-dia – Jesus, cansado, sentou-se junto do poço de Jacob. Nisto, uma mulher vem buscar água e Jesus pede-lhe de beber. Ela estranha o pedido: como, sendo tu judeu, me pedes de beber? Jesus oferece-lhe também uma água especial e pede-lhe para chamar o marido que não tem e já teve muitos. O espanto é que ele não a censura. A samaritana sente que está num encontro muito especial e faz-lhe a pergunta que vai desencadear uma declaração de Jesus que continua essencial.
É um encontro de povos inimigos e de uma nova religião que nem é de Jerusalém nem do monte de Garizim. Chegou uma nova era para a expressão cultural da religião. Sagrado é o ser humano, templo de Deus, não as nossas construções, grandes ou pequenas, que são apenas lugares de acolhimento e celebração. Cultivar a inimizade entre os povos por motivos religiosos é criminoso.
A samaritana tinha encontrado, de facto, a interrogação fundamental e correu a partilhá-la: não será Ele o Messias? É espantosa a resposta que encontrou no seu povo: verificámos que é Ele o salvador do mundo.
Segundo as narrativas evangélicas, Jesus encontrou nas mulheres as suas melhores testemunhas.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Gal 3, 26-28
[2] Cf. Clara Raimundo, 7Margens, 08.03.2023
[3] Lc 9, 51-56
[4] Jo 9, 51-56
[5] Lc 10, 23-37
[6] Jo 4, 1-42