Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO
A grande transfiguração de que precisamos
é de escutar de novo o Evangelho
– no contexto dos problemas actuais –
e ouvir sobretudo as vítimas dos abusos sexuais na Igreja.
1. A este título acrescento: ao serviço da transfiguração do mundo. É evidente que sem a transfiguração da Igreja nada feito. Se ela deixar de ser o sal da terra e a luz do mundo, não serve para nada, torna-se desprezível, como o próprio Jesus afirmou. João Eleutério coordenou um projecto designado Uma anatomia do poder eclesiástico, tentando identificar as estruturas e formas de clericalismo na Igreja contemporânea, em particular na realidade portuguesa. O debate está aberto [1]. Parabéns.
Para ir às próprias raízes desta problemática, é indispensável ir directamente às narrativas do Novo Testamento, perguntando como é que Jesus venceu as tentações messiânicas do poder de dominar, para fazer da vida um serviço de alegria para todos.
Não era esse o sonho dos discípulos. Pressentiram que, talvez, o Jesus que os convocara fosse o Messias e, nesse caso, a troca dos trabalhos de pobres pescadores pela associação ao projecto messiânico só trazia vantagens. Quando o Messias viesse, segundo a opinião corrente, ele resolveria, milagrosamente, os problemas económicos, sociais, religiosos e políticos das populações.
A figura diabólica das tentações de Jesus era, precisamente, o exercício permanente do milagre, pois, se Ele era um íntimo de Deus, o filho de Deus, tinha de ter o poder de Deus. E Deus era o todo-poderoso a quem ninguém podia resistir. Era essa falsa representação de Deus e da esperança messiânica que habitava as populações, assim como os pescadores que Ele convocou para discípulos.
Era essa convicção que os fazia aderir, sem discussão, a uma proposta que julgavam exaltante, um privilégio. O Reino de Deus estava próximo e eles situavam-se na carreira que faria deles os primeiros colaboradores no advento dessa nova era. Era tal a esperança que as dúvidas, que o comportamento de Jesus suscitava, eram insignificantes perante o desejo que os movia.
O próprio Jesus foi-se dando conta de que algo de esquisito se passava no grupo, mas eram os fariseus e saduceus que enquadravam a grande maioria da população que resolveram pô-lo à prova, pedindo-lhe um sinal vindo do céu, para testarem a sua autenticidade messiânica. Respondeu de modo enigmático, a partir de uma experiência comum em relação ao céu climático: vós sabeis pela cor do céu se vai vir bom ou mau tempo. Sabeis interpretar o aspecto do céu, mas nada sabeis acerca dos sinais dos tempos, sinais dos tempos messiânicos. E desabafa: esta é uma geração má e adúltera que exige um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado a não ser o de Jonas. Mais não disse e abandonou-os.
A simbólica dos sinais dos tempos foi assumida no Vaticano II, muito trabalhada pelo padre Chenu, O.P., para guiar o tempo da Igreja e não andar às cegas.
Jesus tinha vencido as tentações messiânicas, mas os discípulos não. Para estes, não eram tentações, eram sonhos messiânicos que eles alimentavam. Daí a incompreensão do que o Mestre andava a dizer e a fazer.
Jesus apanhou-os a discutir entre eles, perguntou-lhes qual era o assunto da discussão e descobriu que eles disputavam os primeiros lugares, na mira do advento do reino messiânico. As narrativas são comuns nos Evangelhos sinópticos com algumas diferenças de pormenor. Isto revela que o centro da mensagem de Jesus consiste em recusar, aos discípulos, a ambição do poder de dominar e propor o caminho da conversão radical ao poder de servir [2]. Quando se debate qual é a essência do Cristianismo, isto nunca devia ser esquecido.
2. Na Igreja, não pode haver nenhuma forma de dominação. É um crime. Podem e devem existir muitas formas de serviço, segundo as necessidades das comunidades, das populações.
O melhor é ler a narrativa evangélica, segundo S. Marcos, onde vem tudo muito bem explicado. "Tiago e João, filhos de Zebedeu, aproximaram-se dele e disseram: Mestre, queremos que nos faças o que te pedimos. Disse-lhes: Que quereis que vos faça? Eles disseram: Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda. Jesus respondeu: Não sabeis o que pedis. Podeis beber o cálice que Eu vou beber e receber o baptismo em que vou ser baptizado?" Esta pergunta não era de resposta fácil, mas eles estavam por tudo para chegar ao poder. Por isso, responderam sem pensar: Podemos. Jesus troca-lhes as voltas: Bebereis o cálice que Eu bebo e sereis baptizados com o baptismo com o qual Eu sou baptizado. Sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não me pertence a mim concedê-lo. É para aqueles para quem está reservado. Isso não os incomodou.
No entanto, os outros dez, tendo verificado que Tiago e João se tinham adiantado, ficaram indignados com essa iniciativa. Jesus chamou-os e declarou a todos: sabeis como aqueles que são considerados governantes das nações fazem sentir a sua autoridade sobre elas e como os grandes exercem o seu poder. Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo e quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se o servo de todos. Pois também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida por todos [3].
3. A narrativa da Transfiguração de Cristo perante os discípulos, segundo S. Mateus, foi assumida na Mensagem para a Quaresma 2023 do Papa Francisco. Entre outras perspectivas, serviu-se da simbólica da Transfiguração para a inscrever no caminho sinodal. Far-nos-á bem reflectir sobre esta relação que existe entre a ascese quaresmal e a experiência sinodal que devemos viver na Igreja.
O caminho sinodal está radicado na tradição da Igreja e, ao mesmo tempo, aberto para a novidade. A tradição é fonte de inspiração para procurar estradas novas, evitando as contrapostas tentações do imobilismo e da experimentação improvisada. O caminho ascético quaresmal e, de modo semelhante, o sinodal, têm como meta uma transfiguração, pessoal e eclesial.
Já clarifiquei que não bastava falar da transfiguração da Igreja, pois a Igreja não é para a Igreja. Ela só tem sentido ao serviço multifacetado da sociedade. A sua indispensável transfiguração é para a tornar capaz de cumprir a sua missão, a de transfigurar o mundo.
O cenário evangélico, no qual Jesus se transfigura perante os discípulos, é por causa destes e da responsabilidade a que estavam chamados.
Jesus tinha feito um inquérito de opinião, tanto acerca do que se pensava d’Ele, fora do círculo dos discípulos e dos próprios discípulos. Não tinha ficado satisfeito. Era preciso dar um sinal de que Jesus não andava por conta própria. Daí, a voz de Deus para os discípulos: Este é o meu Filho muito amado, no qual me revejo. Escutai-o [4].
A grande transfiguração de que precisamos é de escutar de novo o Evangelho – no contexto dos problemas actuais – e ouvir sobretudo as vítimas dos abusos sexuais na Igreja.
P.S. Acabo de receber e ler a "Carta aos bispos da Igreja em Portugal sobre as mudanças que todos necessitamos de fazer". Apoio totalmente. Parabéns a quem teve esta importante iniciativa e a realizou.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] João Eleutério (coord.), Uma Anatomia do Poder Eclesiástico, UCP, Lisboa 2022.
[2] Cf. Teresa Vasconcelos, Uma Universidade Católica para quê? Para quem?, 7Margens, 01.03.2023.
[3] Cf. Mc 10, 35-45 e paralelos.
[4] Mt 17, 1-9.