Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO
"O Papa Francisco não esperou por ver resolvida a referida declaração
de João Paulo II para nomear 17 mulheres muito qualificadas
para várias funções na reforma da Cúria romana."
1. Para perceber o contexto da minha intervenção sobre o Papa Francisco e o lugar da mulher na Igreja [1], recomendo a leitura de Um apelo urgente à ação no Dia Internacional das Mulheres, feito por António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas [2], assim como os dez pensamentos do Papa Francisco para o mesmo dia [3].
Não me parece muito produtivo centrar o debate sobre a ordenação sacerdotal das mulheres, pois o que deve ser discutido é a própria sacralização dos ministérios (serviços) na Igreja.
Como mostrou Frei José Nunes, O.P., a história da Igreja dá conta de uma evolução na compreensão e vivência dos ministérios, cuja chave de interpretação é a de um princípio de clericalização ou sacerdotalização dos mesmos, perdendo-se progressivamente a consciência duma evocação ministerial de toda a comunidade, evidente na Igreja das origens.
Este fenómeno é paralelo a uma autonomização dos ministros ordenados e a um processo de interpretação dos ministros e ministérios da Igreja, a nível teórico e prático, em categorias sacerdotais provenientes do Antigo Testamento [4].
Não foi há séculos que o Papa João Paulo II (1994), no exercício das suas funções, observou que, "embora a doutrina sobre a ordenação sacerdotal, que deve reservar-se somente aos homens, se mantenha na Tradição constante e universal da Igreja e seja firmemente ensinada pelo Magistério nos documentos mais recentes, todavia actualmente em diversos lugares continua-se a retê-la como discutível, ou atribui-se um valor meramente disciplinar à decisão da Igreja de não admitir as mulheres à ordenação sacerdotal".
E vem a declaração: "A Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja [5]." Depois, o Cardeal Ratzinger respondeu à dúvida sobre a doutrina da referida Carta Apostólica: «Esta doutrina exige um assentimento definitivo.» A Congregação para a Doutrina da Fé continuou a sua reflexão, que me parece pouco clarificadora.
No caminho sinodal, continuaram a surgir várias reacções. O teólogo espanhol José I. González Faus (17/2/2023) enviou uma carta ao Bispo de Roma, tentando mostrar que não têm razão de ser as hesitações do Papa Francisco a propósito da legitimidade da ordenação das mulheres.
O teólogo espanhol, José I. González Faus (17/2/2023), enviou uma carta ao Bispo de Roma, tentando mostrar que não têm razão de ser as hesitações do Papa Francisco a propósito da legitimidade da ordenação das mulheres
Temos o testemunho evangélico de que, desde o início do ministério público de Jesus, havia um grupo de mulheres, libertas de todos os demónios, que não só financiou espontaneamente o seu projecto, como O seguiu por pura sedução até ao fim [6]. Isto é, mesmo durante o tempo que os discípulos homens O abandonaram, desapontados com o que tinha acontecido, elas mantiveram-se firmes e nem aceitaram que a morte fosse o fim.
Prepararam tudo para que não faltassem os rituais fúnebres do costume [7], embora, na interpretação de Jesus, uma mulher, a quem o Evangelho de João chama Maria, já tivesse antecipado de forma espectacular, derramando sobre Ele um caríssimo perfume de nardo puro [8].
2. Se, no Cristianismo, se considerou sempre o acontecimento da Ressurreição como algo decisivo, o que aconteceu, de facto, pode-se dizer que foi sobretudo um acontecimento acolhido pelas mulheres que O tinham seguido sempre e que nem na morte O abandonaram.
Na verdade, segundo a variedade das narrativas pascais, são elas as escolhidas por Cristo para reevangelizar os discípulos, os apóstolos que, perante a morte do Mestre, tinham dispersado. Nesse movimento fundador, faz das mulheres as apóstolas dos apóstolos.
Quando se repete que Jesus não escolheu nenhuma mulher para o grupo dos doze, não se pode esquecer esta ordenação realizada pelo Ressuscitado. Admira-me que não se queira ver o que está explicitamente apresentado nos quatro Evangelhos, como acontecimento decisivo, como o grande marco de um novo começo.
Alguns teólogos parecem-me paralisados pela referida declaração da Ordinatio Sacerdotalis, em vez de destacarem a novidade do Evangelho da Ressurreição. A fé cristã não é um calmante da inteligência e dos afectos, mas um excitante: Quantum potes, tantum aude, atreve-te a atingir o máximo que puderes [9].
O próprio Papa Francisco, nos dez pensamentos acima referidos, reconhece a importância das mulheres na Ressurreição, dizendo que "os apóstolos e os discípulos têm dificuldade de acreditar. As mulheres, não". Esta observação não consegue, no entanto, restituir a força teológica que as narrativas da Ressurreição deram àquelas testemunhas femininas.
3. Comecei por evocar o apelo de António Guterres. Volto a esse apelo: "Em todo o mundo, o progresso dos direitos das mulheres está a desaparecer diante dos nossos olhos. Segundo as previsões mais recentes, ao ritmo atual, serão necessários mais 300 anos para alcançar a plena igualdade de género."
"Atualmente, a sucessão de várias crises, desde a Guerra na Ucrânia à emergência climática, afeta em primeiro lugar e de forma mais dura as mulheres e as meninas. E como resultado do retrocesso mundial da democracia, os direitos das mulheres sobre os seus corpos e sobre a autonomia das suas vidas estão a ser questionados e negados.
"Duas estatísticas evidenciam claramente o nosso fracasso: a cada dez minutos, uma mulher ou menina é assassinada por um membro da família ou por um parceiro íntimo."
"E a cada dois minutos, uma mulher morre durante a gravidez ou o parto. A maioria destas mortes é perfeitamente evitável."
"Neste Dia Internacional das Mulheres, temos de nos comprometer a fazer melhor. Precisamos reverter estas tendências alarmantes e apoiar as vidas e os direitos das mulheres e das meninas, em todos os lugares."
"Esta é uma das minhas principais prioridades e um pilar fundamental do trabalho das Nações Unidas em todo o mundo."
Quando a teologia não tem em conta esta realidade gritante, é porque se trata de uma teologia alienada e alienante, paralisada e paralisante. O Papa Francisco não esperou por ver resolvida a referida declaração de João Paulo II para nomear 17 mulheres muito qualificadas para várias funções na reforma da Cúria romana.
Bergoglio não esqueceu, no entanto, um dos textos mais importantes, do século XX, sobre a evangelização, Evangelii nuntiandi (1975), do Papa Paulo VI. Confessa que esse texto conserva toda a sua frescura, como se fosse escrito ontem. A reforma da Cúria só tem sentido se estiver ao serviço de uma Igreja que se evangeliza para evangelizar.
Crónica de Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] ISTA, 1/4/2023, às 16h30, no Convento de S. Domingos
[2] PÚBLICO, 8/3/2023
[3] Cf. https://www.imissio.net>papa-francisco
[4] José Nunes, O.P., Pequenas Comunidades Cristãs, UCP e FEAA, Porto, 1991, cf. pp. 277-28
[5] Cf. Carta Apostólica Ordinatio Sacerdotalis, João Paulo II, 1994
[6] Lc 8, 1-3;
[7] Mt. 28, 1-8; Mc 16, 1-4; Lc 24, 1-10; Jo 20, 1-2
[8] Mt 26, 6-13; Mc 14, 3-9; Jo 12, 1-8
[9] Sequência da Eucaristia da festa do Corpo de Deus, de Tomás de Aquino