Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias
1. O que é a Bíblia? A palavra deriva do grego, com o significado de "os livros". Em latim, e, por derivação, em português, o termo grego transformou-se num singular feminino -- Bíblia --, designando o conjunto dos textos que formam o que também se chama a Sagrada Escritura. Abrange, na sua totalidade, o Antigo Testamento e o Novo Testamento, contendo 73 livros e constituindo, portanto, uma pequena biblioteca. A sua formação e redacção demorou mais de mil anos. É necessário ter isso em conta, pois não é um livro como o entendemos agora, escrito por um autor e num determinado tempo. Trata-se de uma obra de numerosos autores, muitos até desconhecidos, e alguns dos escritos são inclusivamente o resultado da compilação de tradições e textos anteriores.
Daqui conclui-se que, para a compreensão adequada da Bíblia, se impõe conhecer a história dos textos, as línguas, os lugares, os tempos, os géneros literários, os contextos em que apareceram e os destinatários a que se dirigiam. Decisivo é entender também a configuração final, pois foi enquanto totalidade e unidade que a comunidade cristã a recebeu como expressão e testemunho da sua fé. Neste sentido, a linha essencial da sua compreensão é a libertação e salvação plena de todos os homens e mulheres. Na Bíblia, encontram os crentes quem é Deus para a humanidade e o que é e representa a humanidade para Deus enquanto salvador e doador de sentido e sentido final para a existência humana, para o mundo e para a história. A Bíblia é a leitura da história do mundo e da humanidade à luz do desígnio salvador de Deus. Assim, o fio condutor da sua leitura e interpretação tem de ser sempre a liberdade, a humanização, a felicidade, a libertação e salvação plena de todos. Só a esta luz a Bíblia é verdadeira, de tal modo que o que nela se encontra de menos humano ou até de desumano é para dizer-nos o que Deus não é e o que o ser humano não deve ser.
A Bíblia é o livro mais traduzido e mais lido da História: no ano 2003, havia tradução, na totalidade ou em parte, para 2303 línguas e já se contavam 555 milhões de exemplares em todo o mundo. É também a obra mais estudada, havendo mesmo centros de investigação universitária com a finalidade exclusiva do seu estudo.
A Bíblia é, antes de mais, o livro de importância essencial para os crentes cristãos, pois nela encontram o núcleo da sua fé. Ao longo dos séculos, serviu de alimento espiritual, de esperança, de orientação, para a vida e para a morte, a um sem-número de homens e mulheres: judeus, cristãos e também não crentes. Ela é igualmente de valor fundamental no quadro da cultura. Porquê? Sem ela, não é possível compreender a história da cultura mundial, mas sobretudo a história da humanidade europeia. Dizia o filósofo Ernst Bloch, com quem tive o privilégio de conversar: sem o conhecimento da Bíblia, não podemos compreender muitas revoluções, que tiveram na sua base o messianismo e a proclamação da chegada do Reino de Deus, não podemos compreender as catedrais, o gótico, a Idade Média, Dante, Rembrandt, Haendel, Bach, Beethoven, a grande literatura, a grande pintura, a grande escultura, a grande música, os Requiem, a grande filosofia, "absolutamente nada".
Impõe-se, pois, pôr termo ao desconhecimento da Bíblia, já que esse desconhecimento constitui uma "situação insustentável", concluía Bloch, filósofo ateu e, ao mesmo tempo, religioso: "onde há esperança há religião"...
Da Bíblia também disse Heinrich Heine: "Que livro! Grande e extenso como o mundo, enraizado nos abismos da criação e erguendo-se para os mistérios azuis do céu... Nascer do Sol e pôr do Sol, promessa e realização, nascimento e morte, o drama todo da humanidade: está tudo neste livro. É o livro dos livros, Bíblia."
E Lídia Jorge: "A Bíblia é o poema colectivo mais longo criado até agora pela humanidade. Nele se espelham as várias batalhas que os homens engendram na sua demanda pelo amor absoluto. Não admira que a literatura ocidental nele tenha encontrado os seus modelos de narração amorosa mais fortes e que os seus mitos continuem a servir de moldura para o pensamento em torno da liberdade e da paz."
2 Como disse, é essencial saber lê-la, exige-se uma leitura histórico-crítica, pois, à letra, pode levar a desastres. Por exemplo, o livro do Génesis, quando se refere à criação do mundo e ao primeiro pecado, não pode ser tomado como se se tratasse de uma história, pois é de um mito que se trata. Foi porque se tomou à letra que a mulher ao longo da História foi vista como inferior, pois foi criada em segundo lugar e na dependência do homem e é a tentadora. E como é possível, hoje, à luz da evolução, pretender basear a doutrina do pecado original no pecado de Adão e Eva? E como não ler, aterrados, a ordem de Deus a Abraão para lhe sacrificar o filho Isaac? "Deus pôs Abraão à prova e chamou-o: "Abraão!" Ele respondeu "Aqui estou". Deus disse: "Pega no teu filho, no teu único filho, a quem tanto amas, Isaac, e vai à região de Moriá, onde o oferecerás em holocausto num dos montes que eu te indicar"(...) Abraão construiu um altar, dispôs a lenha, atou Isaac, seu filho, e colocou-o sobre o altar, por cima da lenha." Embora tenha sido substituído por um carneiro, Isaac não se terá tornado ateu? Como aceitar à letra o Antigo Testamento na sua sequência de horrores e de guerras? E o Novo Testamento, quando discrimina a mulher? Apenas exemplos.
Anselmo Borges no Diário de Notícias
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia