no Diário de Notícias
1.A Igreja é, originariamente, a assembleia dos que acreditam em Jesus como o Messias Salvador. De facto, é também uma instituição e hoje, na realidade, a única instituição verdadeiramente global, com um chefe, que é também chefe de Estado. Assim, ergue-se, imensa, uma pergunta, formulada nestes termos por Paulo Rangel no Posfácio ao meu livro O Mundo e a Igreja. Que futuro?: "Que sentido faz que o chefe de uma Igreja seja chefe de Estado? Depois do Vaticano II, com a inauguração duma possível era republicana na cúpula da Igreja Católica, é admissível ou não a natureza político-constitucional e jus-internacional da própria Igreja e do seu vértice? Não seria altura de separar as águas e despir o Papa das últimas vestes de César? Não seria esse o próximo passo da Igreja no caminho do despojamento e do desprendimento?"
Paulo Rangel reconhece que são muitos os que vão neste sentido de uma "despolitização" do Vaticano e da Igreja, que deveria entregar-se à sua missão puramente espiritual e pastoral. Mas, por outro lado, quando se olha para o contributo do Papa e da rede diplomática do Vaticano para a paz, para a justiça, na defesa da dignidade das pessoas (refugiados e marginalizados), na denúncia do capitalismo selvagem, das perseguições e violências, é preciso perguntar também: "O mundo estaria melhor e os humanos viveriam melhor se a Igreja não dispusesse deste "aparelho" estadual? É evidente que não". E conclui: A Igreja, não há dúvida, precisa de se reformar e converter, mas essa conversão "não exige nem postula o abandono de um dos grandes ministérios de que dispõe para servir a Humanidade - a sua diplomacia em favor da justiça e da paz, decorrente do reconhecimento internacional da sua natureza de Estado. Pelo contrário, pode mesmo reclamar essa natureza e identidade como forma supina de servir."
2. Foi neste quadro que o Papa Francisco esteve, entre 31 de Janeiro e 5 de Fevereiro, na República Democrática do Congo e no Sudão do Sul, massacrados pela violência, pela exploração, numa dor sem fim. No Sudão do Sul, esteve acompanhado pelo arcebispo anglicano de Cantuária, J. Welby, e o moderador da Assembleia geral da Igreja da Escócia, I. Greenshieds, irmãos numa peregrinação ecuménica ao serviço da paz. Foi Welby que recordou aquele gesto inesquecível em Roma, em 2019, quando Francisco, num esforço fisicamente tão penoso, se ajoelhou diante dos três líderes do Sudão do Sul e lhes beijou os sapatos, suplicando um esforço para avançarem na paz.
E nestes dias juntaram-se multidões para saudar Francisco, ouvi-lo nas denúncias sem rodeios de tanta exploração económica e bélica mundial, suplicando pontes de entendimento em ordem à paz. O Papa, na sua debilidade física, em cadeira de rodas, mas firme na sua missão profética, foi exemplo evangélico, cristão, de entrega ao cuidado da Humanidade na justiça, na fraternidade e na paz. Também se alegrou quando presidiu àquelas celebrações a que acederam multidões cantando e dançando num ritmo que só os africanos sabem e têm. E comoveu-se tantas vezes, no contacto com mutilados de guerra, e certamente nunca esquecerá aquela menina a oferecer-lhe uma esmola.
3. Também deixou recados para o interior da Igreja, nomeadamente para o clero. Assim: "Se vivermos para "nos servirmos" do povo em vez de "servir" o povo, o sacerdócio e a vida consagrada tornam-se estéreis. Não se trata de um trabalho para ganhar dinheiro ou ter uma posição social nem para resolver a situação da família de origem, trata-se de ser sinais da presença de Cristo, do seu amor incondicional, do perdão com que quer reconciliar-nos." "Que não suceda que nos julguemos autossuficientes, muito menos que se veja no episcopado a possibilidade de escalar posições sociais e de exercer o poder. O espírito malvado do carreirismo! E, sobretudo, que não entre o espírito mundano, que nos faz interpretar o ministério segundo critérios de benefício pessoal, que nos torna frios e distantes." "Não somos os chefes de uma tribo, mas pastores compassivos e misericordiosos; não somos os donos do povo, mas servos que se inclinam a lavar os pés dos irmãos e irmãs."
O essencial da mensagem transmitida nos dois países foi retomado na conferência de imprensa, já no regresso a Roma. Assim: "Vi no Congo muita vontade de avançar, muita cultura. Têm tantas riquezas naturais que atraem quem vem explorar o Congo, perdão pela palavra. É preciso abandonar a ideia de que África é para explorar. Dá dor: as vítimas dessa guerra, amputados, tanta dor, tudo para levar as riquezas. Não, não pode ser."
"A violência é um tema quotidiano. É doloroso ver como se provoca a violência. Um dos problemas é a venda de armas. A venda de armas creio que é a maior praga do mundo. O negócio! Alguém me disse que, se não se vendesse armas durante um ano, se acabaria com a fome no mundo. Também é certo que se provoca a luta entre tribos vendendo armas e depois explora-se a guerra entre tribos. Isto é diabólico."
"O mundo todo está em guerra (Síria, Iémen, Myanmar, na América Latina, quantos focos de guerra!). O mundo está em guerra e em autodestruição. Paremos a tempo, porque uma bomba traz outra maior e outra maior e, na escalada, não sabes onde acabarás."
E a sua saúde? Felizmente, sempre com humor: "Este joelho chato!, mas, como se sabe, erva ruim nunca morre!". Continuará, pois, o combate contra "a globalização da indiferença, presente em todo o lado."
Anselmo Borges no DN
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia