segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

DOMINAÇÃO E OCULTAÇÃO

Crónica de Bento Domingues 
no PÚBLICO 

O que se pretende é que a Igreja seja de todos e para todos, sinodal: comunhão, participação e missão. Só numa Igreja aberta ao mundo, sem segredos, será possível erradicar os abusos.

1. Os negacionistas, que atribuíam a intenções malévolas as notícias sobre os abusos sexuais do clero, já não podem ignorar o Relatório Final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa (CI). Está publicado e muito acessível.
Esta comissão não foi constituída contra a Igreja. Pelo contrário, é fruto de um convite dirigido a Pedro Strecht, médico pedopsiquiatra, no final de 2021, por parte de D. José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP). A equipa de trabalho foi escolhida por Pedro Strecht e organizada de forma paritária, multidisciplinar, integrando profissionais de reconhecido mérito e com diferentes percursos de vida. Iniciou os seus trabalhos em Janeiro de 2022, definindo o tempo de um ano como prazo de duração dos mesmos, com a apresentação final de um relatório que acaba de ser apresentado e publicado, na Fundação Calouste Gulbenkian. Foi entregue a D. José Ornelas, que se mostrou muito agradecido, mas só no dia 3 de Março haverá uma assembleia extraordinária da CEP para análise desse relatório, sabendo-se já que vários bispos não ajudaram nada o trabalho exemplar da dita comissão.
Espero que, entretanto, recolha vozes de dentro e fora da Igreja, para encontrar os melhores caminhos para responder à situação trágica das vítimas dos abusos. Parece-me que a CI deveria ser convidada para participar na configuração das medidas que o passado, o presente e o futuro impõem. E não só ela. Como eco do que já revelou a CI, surgiram, nos meios de comunicação, comentários extremamente pertinentes e certamente vão continuar. Seria importante que fosse criado um fórum aberto, não só para ampliar testemunhos das vítimas e o modo de as escutar, mas também para sugerir as alterações que devem ser promovidas no seio da Igreja e da sociedade.
No momento em que escrevo, verifiquei a alta qualidade dos textos publicados no jornal PÚBLICO, nos dias 14, 15 e 16, que já constituem um excelente dossier. Teve, este jornal, o cuidado de começar por dar expressão a muitas vozes católicas.
Além da atenção contínua às vítimas do abuso sexual do clero, o editorial do 7Margens (13/2/2023), com o título Não foi um meteorito, são pessoas destruídas. Que fazer com esta tragédia?, António Marujo, Clara Raimundo, Jorge Wemans e Manuel Pinto perguntam o que vamos fazer com esta realidade que foi agora desvendada e que alguns, inclusive na hierarquia da Igreja, desconsideraram e até ridicularizaram, ao considerar este país um oásis em questões de abusos? O que vão fazer os bispos? O que vão fazer os responsáveis políticos? O que vamos fazer todos nós, enquanto sociedade?
Com o Papa Francisco, desde o começo até agora (2013-2023), a Igreja Católica, na sua vida interna, nas suas relações ecuménicas, de diálogo inter-religioso e com o mundo secular, viveu uma complexidade de experiências como talvez nunca tenha vivido. Foi, no entanto, a convocatória (21/5/2021) para o Sínodo previsto para 2023, entretanto alargado até 2024, com uma inédita consulta ao povo cristão em assembleias paroquiais, diocesanas, nacionais e continentais, que pode vir a alterar a realidade e o estilo de vida e organização da própria Igreja. O que se pretende é que a Igreja seja de todos e para todos, isto é, uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão.
Só quando se tornar prática corrente este estilo de vida, em Igreja aberta ao mundo sem segredos, é que será possível erradicar os abusos apresentados no citado relatório.
Sem esta reforma fundamental, o clericalismo continuará a exercer o seu poder de dominação e de ocultação.

2. Foi esclarecido, entretanto, que o Sínodo não é um evento, mas um processo, no qual todo o povo cristão é chamado a caminhar junto até que o Espírito Santo o ajude a discernir qual a vontade do Senhor para a sua Igreja. Por isso, também a própria Assembleia Sinodal assumirá uma dimensão processual, configurando-se como um caminho dentro de um caminho, para favorecer uma reflexão mais madura para o bem maior da Igreja ao serviço de todos os povos, sejam crentes ou não.
Como todos os católicos foram convocados a participar activamente no processo sinodal, se o não fizeram a culpa não é do Papa Francisco.
Em Praga, de 5 a 12 de Fevereiro, realizou-se a fase continental europeia do Sínodo. É impossível narrar tudo o que aconteceu durante essa semana. Existem várias formas de acesso a essa vasta documentação, por exemplo, 7Margens, Ecclesia e Vaticano [1].
Na abertura desta reunião, Tomás Hallík, um teólogo muito conhecido, fez uma Introdução espiritual aos trabalhos [2]. Sublinhou que, no caminhar juntos, que caracteriza a sinodalidade, a Igreja precisa urgentemente de aliados, com quem partilha o caminho comum. Mas, para tal, não deve abordar os outros com o orgulho e arrogância de quem possui a verdade. A verdade é um livro que nenhum de nós leu até ao fim. Não somos os donos da verdade, mas amantes da verdade e amantes d’Aquele que pode dizer: Eu sou a Verdade.
Ao caracterizar a situação actual, este teólogo referiu-se também ao paradoxo da globalização que caracteriza a pós-modernidade. Por um lado, a interligação quase universal; por outro, a pluralidade radical. O lado negro da globalização tem vindo a manifestar-se de forma cada vez mais inquietante. Pense-se na propagação global da violência, desde os ataques terroristas aos EUA, em 2001, até ao terrorismo de Estado do imperialismo russo e ao actual genocídio russo na Ucrânia, sem esquecer pandemias de doenças infecciosas, destruição do ambiente natural, destruição do clima moral através do populismo, fake news, nacionalismo, radicalismo político e fundamentalismo religioso.

3. Entre as muitas conclusões da Assembleia Continental Europeia (9/2/2023), destaco a vontade de aprofundar a prática, a teologia e a hermenêutica da sinodalidade. Temos que redescobrir algo que é antigo, que pertence à natureza da Igreja e é sempre novo. Estamos a dar os primeiros passos num caminho que se abre à medida que o percorremos.
Um dos grandes problemas que o Sínodo não pode evitar é o de tomar decisões concretas e corajosas sobre o papel da mulher na Igreja e sobre o seu maior envolvimento a todos os níveis, também nos processos de tomada de decisão. Não existe um baptismo cristão para homens e outro diferente para mulheres. É o baptismo assumido que constitui homens e mulheres sacerdotes. A organização dos ministérios, dos serviços eclesiais, não pode trair esta realidade de base.
Importa renovar um vivo sentido de missão, fazendo a ponte entre fé e cultura para que o Evangelho volte a fazer parte dos sentimentos das pessoas, encontrando uma linguagem capaz de articular tradição e aggiornamento, mas, acima de tudo, caminhar com as pessoas em vez de falar delas ou para elas. O Espírito pede-nos para ouvir o grito dos pobres e da terra na Europa e, em particular, o grito desesperado das vítimas da guerra que exigem uma paz justa.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Manuel Pinto, in 7Margens, seguiu todo esse processo.
[2] O texto completo da “introdução espiritual" de Tomás Hallik encontra-se disponível em espanhol, italiano, francês e inglês, in 7Margens, 6/2/2023

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