no Diário de Notícias
Os historiadores e fenomenólogos da religião fazem notar que, mesmo nas sociedades secularizadas, encontramos ainda algo dos mitos cosmogónicos, nomeadamente nos festejos da passagem de ano: folguedos e licenças, uma certa tonalidade orgiástica, alguma "confusão" social, na noite de passagem de ano, simbolizam o regresso ao estado indiferenciado e caótico de antes da formação do mundo pelos deuses. Volta-se, portanto, de algum modo, ao caos das origens, para que o mundo se regenere e se reponha o cosmos, um mundo outra vez novo, ordenado, belo: a caos contrapõe-se precisamente cosmos, que quer dizer belo (é do grego kosmós que vem cosmética)...
Aparentemente, é a repetição. Mas, de facto, é mesmo no novo que nos encontramos, dia 1 de Janeiro de 2023, (Janeiro, de Jano, o deus com dupla face: uma voltada para trás e outra para a frente). Embora enraizados no passado e sem esquecê-lo, de facto nunca houve nem nunca haverá um ano como este em que acabámos de entrar. É novo e único na história da humanidade e do mundo.
Depois dos alegres e ledos festejos, também haverá alguns pensamentos de meditação.
É tão certo tratar-se de um ano novo que para nós constitui uma incógnita. O que acontecerá?, como será? Até certo ponto, o ano que começa é programável, mas nunca de modo adequado, pois há o completamente imprevisível: não somos senhores absolutos do tempo, do futuro. Há o que podemos e devemos programar, dito na palavra futuro e há o que chega sem nós, que não podemos programar, dito na língua alemã na distinção entre Futur e Zukunft. Mas é preciso estar preparado, preparar-se, para o que chega sem nós, o inesperado. Por isso, um dos conselhos mais veementes no início do novo ano é cada um, cada uma, prometer a si próprio, a si própria, que dedicará diariamente alguns instantes ao silêncio, para estar consigo, meditando, reflectindo, sobre a sua vida, a orientação a dar-lhe... Quantos desastres pessoais, familiares, políticos, se evitariam, se houvesse este propósito, prometido e cumprido, ao longo dos dias de um novo ano... Desastres e tragédias.
Nestes dias festivos, lembramos mais os amigos, os familiares, aqueles e aquelas que levamos no coração. Ao menos por esta altura, há uma saudação, uma palavra, um encontro. Mas talvez nenhum de nós, nesta lembrança, tenha deixado de deparar-se com um buraco negro: um amigo, um familiar, uma amiga, que ainda no ano passado cá estavam e já cá não estão. E é uma falta e uma tristeza e um queixume e uma pergunta e talvez uma oração (afinal, rezar é perguntar...). A falta que nos fazem! Ficámos com saudades. A palavra saudade é uma palavra tipicamente portuguesa, que não encontra tradução adequada noutras línguas, e até a sua etimologia é discutida, mas, se vier de salutem dare (saudar), significa que, esteja onde estiver o nosso amigo, a nossa amiga, manifestamos o desejo de que passem bem, se vier de solitate (solidão), então exprime o nosso sentimento de solidão, porque não estão presentes e fazem falta. E uma advertência: por vezes, fica um remorso, porque não fizemos a tempo o que devíamos ter feito com eles e por eles; então um aviso: é preciso fazer a tempo e com tempo o que há para fazer; depois, é tarde, o nunca mais...
O dia primeiro do ano é também o Dia Mundial da Paz, iniciativa que se deve ao Papa Paulo VI. A paz, esse bem inestimável! A paz que não é apenas ausência da guerra, mas tranquilidade na ordem, que resulta da verdade, da justiça, do perdão, da fraternidade, da reconciliação. Reconciliação que tem de contar com cada um: precisamos todos e cada um de estar em paz connosco.
Considerando a loucura de num século já irmos na Terceira Guerra Mundial - a primeira: 1914-1918; a segunda: 1939-1945; a terceira está em curso, com toda a sua crueldade, horrores sem fim..., à vista de todos -, Francisco não se cansa de fazer apelo ao diálogo, ao desarmamento, à paz. No passado dia 8 de Dezembro, na tradicional oração da celebração da Imaculada Conceição, em frente da Coluna de Nossa Senhora, na Piazza di Spagna, em Roma, comoveu-se, e ficou com a voz embargada e algumas lágrimas correram, ao lembrar a martirizada Ucrânia.
Rezou: "Nossa Mãe Imaculada, trago-te o amor filial de homens e mulheres sem conta; trago-te os sorrisos das crianças, que aprendem o teu nome diante da tua imagem, nos braços das mães e avós; trago-te a gratidão dos idosos; trago-te as preocupações das famílias; trago-te os sonhos e as ansiedades dos jovens, abertos ao futuro mas refreados por uma cultura rica em coisas e pobre em valores, saturada de informação e deficiente na educação. Recomendo-te de modo especial os mais pequenos, que foram mais afectados pela pandemia, para que pouco a pouco recuperem para abrir as asas e voar, recuperem o gosto de voar alto. Virgem Imaculada, quereria tanto hoje trazer-te o agradecimento do povo ucraniano pela paz que há muito pedimos ao Senhor; pelo contrário, ainda tenho de apresentar-te a súplica das crianças, dos anciãos, dos pais e das mães, dos jovens dessa terra martirizada. Mas na realidade todos nós sabemos que estás com eles e com todos os que sofrem, como estiveste ao lado da cruz do teu Filho. Obrigados, Mãe nossa. Olhando para ti, podemos continuar a acreditar e a esperar que o amor ganhará ao ódio, a verdade ganhará à mentira, o perdão ganhará à ofensa, a paz ganhará à guerra. Assim seja!" Bom ano de 2023!
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia