Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO
1. Não vale a pena gastar energias a lamentar no que se transformou o Natal de Alguém que nasceu num curral. É melhor cuidar de crianças e adultos que não têm quem cuide deles. De tanto falar do que falta fazer, nem sequer olhamos para o que muitas pessoas estão a realizar.Existe um critério evocado por Jesus: é pelo fruto que se conhece a árvore. Os Anjos da nossa consciência fazem-nos ver o contraste entre os que têm tudo e os que não têm nem o mínimo suficiente para viverem com dignidade. A nossa consciência está povoada de Anjos sufocados.
A própria publicidade natalícia do comércio mostra aquilo a que uns podem ter acesso e o que falta a muitas pessoas que nem um curral têm para dormir. Nesta publicidade, nem tudo é sempre negativo. Pode suscitar o alarme social contra essa clamorosa injustiça, não suscitando, apenas, um cabaz de Natal que se esgota naquele dia e acabou, mas desencadeando movimentos e associações de voluntários que cuidam da dignidade dos pobres e dos sem-abrigo, durante o ano inteiro. Não é para perpetuar situações desumanas, mediante atitudes assistencialistas, mas para promover, simultaneamente, atitudes de cidadania participativa.
Não conheço todas as redes de solidariedade que existem, no país e a nível internacional, mas alegrei-me muito com algumas associações de voluntariado, como a de João 13 – reconhecida e premiada pela Assembleia da República – que, desde há sete anos, garante todos os dias, no seguimento de Cristo que lavou os pés aos discípulos, um banho e uma refeição quente a cerca de 80 sem-abrigo. “A João 13 não é nem se pode tornar numa associação de elites em que nela se pode estar acima dos pobres ou ser um lugar para ir lavar a consciência” (Fr. Filipe Rodrigues, O.P.).
O psicanalista Jacques Lacan, numa conferência em Roma, atreveu-se a declarar, para não meter as religiões todas no mesmo saco, que há uma verdadeira religião: a religião cristã [1]. Falava muito depois do Vaticano II (1962-1965) e talvez nem conhecesse a arrogância religiosa do Concílio de Florença-Ferrara (1442), que declarou: “A Santa Igreja crê firmemente, confessa e proclama que ninguém, fora da Igreja católica – e não somente os pagãos, mas também os judeus e os cismáticos –, pode tomar parte na vida eterna, mas que irá para o fogo eterno, ‘preparado para o diabo e os seus anjos’ (Mt 25, 41), a menos que antes do fim da sua vida de novo se lhe tenha unido.
Uma declaração destas parece pressupor que são as posições históricas da hierarquia que ditam a Deus o que Ele pode e não pode fazer. É uma pretensão ridícula. Nós somos, apenas, investigadores do nosso itinerário no mundo e do seu sentido. Não somos nós que temos um conhecimento e uma experiência de toda a realidade visível e invisível.
No entanto, a arrogância religiosa foi quebrada em Abu Dhabi pelo Papa Francisco, no seguimento do Vaticano II, e pelo Grão Imame, Ahmad Al-Tayyeb. Ambos estavam à escuta de Deus e dos seres humanos [2]. Em Barem (2022), reforçaram e ampliaram o movimento de aproximação que já tinham iniciado. Nessa mesma ocasião, os dois líderes cristãos, de expressões eclesiais diferentes – Papa Francisco e o Patriarca Ortodoxo, Bartolomeu –, no final do Fórum para o Diálogo: Oriente e Ocidente para a Coexistência Humana, dirigiram-se para a mesquita do Palácio Real de Sakhir para o encontro com membros do Conselho Muçulmano de Anciãos, do qual o Grão Imame é presidente.Tudo isto foi possível porque foram abandonadas declarações como a referida do Concílio de Florença-Ferrara. Cristãos e muçulmanos celebram o nascimento de Jesus. Não coincidem na identidade dessa figura profética.
2. As celebrações no Advento – e já estamos no IV Domingo – destinam-se a redescobrir continuamente a identidade de Jesus, a grande questão das primeiras comunidades cristãs, desde que se formaram a partir de pessoas que tinham convivido com Jesus de Nazaré. Os próprios textos do Novo Testamento reflectem esse movimento. Os escritos de Paulo denunciam que ele trabalha, não só a partir da sua própria experiência, mas do que já existia em comunidades que eram anteriores à sua conversão. Os quatro Evangelhos canónicos também mostram a progressiva descoberta da sua verdadeira identidade.
Como referi no domingo passado, o Evangelho de Marcos não tem Natal. Começa com a vida adulta do Nazareno. Mateus e Lucas, com perspectivas diferentes, são as grandes referências do Natal que iremos celebrar nos dias 24 e 25. A sua fantasia é controlada pelas narrativas da vida adulta. Transferem para a criança, que nasceu num curral, a alegria que Jesus trouxe a todos os marginalizados durante a sua intervenção pública. Não era a história, no sentido moderno, que procuravam Mateus e Lucas nas suas narrativas sobre a infância. Eram tentativas para desenhar a identidade teológica: a situação fora de Jerusalém, o anúncio aos pastores que não tinham vida para irem ao Templo ou à sinagoga. A estrela que guiou os Magos desaparece em Jerusalém e reaparece na periferia. A perseguição de Jesus começou cedo: tem de fugir para o estrangeiro logo após o seu nascimento. Foi um refugiado.
Para significarem bem a identidade verdadeiramente humana de Jesus, era normal que tivesse pais humanos, José e Maria, mas também avós, Santa Ana e S. Joaquim, irmãos, primas e primos. Algumas passagens dos apócrifos foram integradas nas representações das Igrejas.
S. João, para mostrar a identidade divina e humana de Jesus, adoptou um magnífico hino para iniciar a sua obra antignóstica de que deixo alguns momentos: No princípio existia o Verbo; o Verbo estava em Deus; e o Verbo era Deus. (…) E o Verbo fez-se carne (ser humano) e veio habitar connosco. E nós contemplámos a sua glória, a glória que possui como Filho Unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade. (…) Todos nós participamos da sua plenitude, recebendo graças sobre graças. É que a Lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade vieram-nos por Jesus Cristo. A Deus nunca ninguém O viu. O Filho Unigénito, que é Deus e está no seio do Pai, foi Ele quem O deu a conhecer.
3. Jesus tomou a sério a questão da sua própria identidade, ao perguntar aos seus discípulos: Quem dizem as pessoas que é Filho do Homem? Responderam: uns que é João Baptista, outros que é Elias e outros que é Jeremias ou algum dos profetas.
E vós, quem dizeis que eu sou? Pedro respondeu: Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo. A resposta inspirada estava certa, mas, como sabia as ideias erradas que circulavam, entre eles, acerca do Messias, enquanto as não corrigissem, o melhor era o silêncio: ordenou-lhes que a ninguém dissessem que o Messias era Ele [3]. Só serviria para aumentar a confusão.
S. Francisco, provocado pelas narrativas dos Evangelhos da Infância, descobriu, no nascimento de Jesus num curral, a imagem de que precisava para realizar a ordem divina que tinha recebido: vai e reconstrói a minha Igreja, uma Igreja despida da dominação económica, política e religiosa.
A própria publicidade natalícia do comércio mostra aquilo a que uns podem ter acesso e o que falta a muitas pessoas que nem um curral têm para dormir. Nesta publicidade, nem tudo é sempre negativo. Pode suscitar o alarme social contra essa clamorosa injustiça, não suscitando, apenas, um cabaz de Natal que se esgota naquele dia e acabou, mas desencadeando movimentos e associações de voluntários que cuidam da dignidade dos pobres e dos sem-abrigo, durante o ano inteiro. Não é para perpetuar situações desumanas, mediante atitudes assistencialistas, mas para promover, simultaneamente, atitudes de cidadania participativa.
Não conheço todas as redes de solidariedade que existem, no país e a nível internacional, mas alegrei-me muito com algumas associações de voluntariado, como a de João 13 – reconhecida e premiada pela Assembleia da República – que, desde há sete anos, garante todos os dias, no seguimento de Cristo que lavou os pés aos discípulos, um banho e uma refeição quente a cerca de 80 sem-abrigo. “A João 13 não é nem se pode tornar numa associação de elites em que nela se pode estar acima dos pobres ou ser um lugar para ir lavar a consciência” (Fr. Filipe Rodrigues, O.P.).
O psicanalista Jacques Lacan, numa conferência em Roma, atreveu-se a declarar, para não meter as religiões todas no mesmo saco, que há uma verdadeira religião: a religião cristã [1]. Falava muito depois do Vaticano II (1962-1965) e talvez nem conhecesse a arrogância religiosa do Concílio de Florença-Ferrara (1442), que declarou: “A Santa Igreja crê firmemente, confessa e proclama que ninguém, fora da Igreja católica – e não somente os pagãos, mas também os judeus e os cismáticos –, pode tomar parte na vida eterna, mas que irá para o fogo eterno, ‘preparado para o diabo e os seus anjos’ (Mt 25, 41), a menos que antes do fim da sua vida de novo se lhe tenha unido.
Uma declaração destas parece pressupor que são as posições históricas da hierarquia que ditam a Deus o que Ele pode e não pode fazer. É uma pretensão ridícula. Nós somos, apenas, investigadores do nosso itinerário no mundo e do seu sentido. Não somos nós que temos um conhecimento e uma experiência de toda a realidade visível e invisível.
No entanto, a arrogância religiosa foi quebrada em Abu Dhabi pelo Papa Francisco, no seguimento do Vaticano II, e pelo Grão Imame, Ahmad Al-Tayyeb. Ambos estavam à escuta de Deus e dos seres humanos [2]. Em Barem (2022), reforçaram e ampliaram o movimento de aproximação que já tinham iniciado. Nessa mesma ocasião, os dois líderes cristãos, de expressões eclesiais diferentes – Papa Francisco e o Patriarca Ortodoxo, Bartolomeu –, no final do Fórum para o Diálogo: Oriente e Ocidente para a Coexistência Humana, dirigiram-se para a mesquita do Palácio Real de Sakhir para o encontro com membros do Conselho Muçulmano de Anciãos, do qual o Grão Imame é presidente.Tudo isto foi possível porque foram abandonadas declarações como a referida do Concílio de Florença-Ferrara. Cristãos e muçulmanos celebram o nascimento de Jesus. Não coincidem na identidade dessa figura profética.
2. As celebrações no Advento – e já estamos no IV Domingo – destinam-se a redescobrir continuamente a identidade de Jesus, a grande questão das primeiras comunidades cristãs, desde que se formaram a partir de pessoas que tinham convivido com Jesus de Nazaré. Os próprios textos do Novo Testamento reflectem esse movimento. Os escritos de Paulo denunciam que ele trabalha, não só a partir da sua própria experiência, mas do que já existia em comunidades que eram anteriores à sua conversão. Os quatro Evangelhos canónicos também mostram a progressiva descoberta da sua verdadeira identidade.
Como referi no domingo passado, o Evangelho de Marcos não tem Natal. Começa com a vida adulta do Nazareno. Mateus e Lucas, com perspectivas diferentes, são as grandes referências do Natal que iremos celebrar nos dias 24 e 25. A sua fantasia é controlada pelas narrativas da vida adulta. Transferem para a criança, que nasceu num curral, a alegria que Jesus trouxe a todos os marginalizados durante a sua intervenção pública. Não era a história, no sentido moderno, que procuravam Mateus e Lucas nas suas narrativas sobre a infância. Eram tentativas para desenhar a identidade teológica: a situação fora de Jerusalém, o anúncio aos pastores que não tinham vida para irem ao Templo ou à sinagoga. A estrela que guiou os Magos desaparece em Jerusalém e reaparece na periferia. A perseguição de Jesus começou cedo: tem de fugir para o estrangeiro logo após o seu nascimento. Foi um refugiado.
Para significarem bem a identidade verdadeiramente humana de Jesus, era normal que tivesse pais humanos, José e Maria, mas também avós, Santa Ana e S. Joaquim, irmãos, primas e primos. Algumas passagens dos apócrifos foram integradas nas representações das Igrejas.
S. João, para mostrar a identidade divina e humana de Jesus, adoptou um magnífico hino para iniciar a sua obra antignóstica de que deixo alguns momentos: No princípio existia o Verbo; o Verbo estava em Deus; e o Verbo era Deus. (…) E o Verbo fez-se carne (ser humano) e veio habitar connosco. E nós contemplámos a sua glória, a glória que possui como Filho Unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade. (…) Todos nós participamos da sua plenitude, recebendo graças sobre graças. É que a Lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade vieram-nos por Jesus Cristo. A Deus nunca ninguém O viu. O Filho Unigénito, que é Deus e está no seio do Pai, foi Ele quem O deu a conhecer.
3. Jesus tomou a sério a questão da sua própria identidade, ao perguntar aos seus discípulos: Quem dizem as pessoas que é Filho do Homem? Responderam: uns que é João Baptista, outros que é Elias e outros que é Jeremias ou algum dos profetas.
E vós, quem dizeis que eu sou? Pedro respondeu: Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo. A resposta inspirada estava certa, mas, como sabia as ideias erradas que circulavam, entre eles, acerca do Messias, enquanto as não corrigissem, o melhor era o silêncio: ordenou-lhes que a ninguém dissessem que o Messias era Ele [3]. Só serviria para aumentar a confusão.
S. Francisco, provocado pelas narrativas dos Evangelhos da Infância, descobriu, no nascimento de Jesus num curral, a imagem de que precisava para realizar a ordem divina que tinha recebido: vai e reconstrói a minha Igreja, uma Igreja despida da dominação económica, política e religiosa.
É esta a verdadeira provocação do Natal.
Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Le Triomphe de la Religion, Seuil, 2005, pp. 81-82
[2] A Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da Convivência comum, 2019
[3] Mt 16, 13-20