Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO Teimamos em contrariar o desígnio de Cristo e seguir o reino da estupidez, o império da guerra. Continuamos, no entanto, a acreditar que a paz vencerá. Por isso, Boas Festas!
1. Quase todos os anos, quando chegava o Natal, procurava e procuro não confundir o Jesus da história e o Cristo da fé. Por Jesus histórico, a obra monumental de John P. Meier (1942-2022) referia-se ao Jesus que podemos resgatar ou reconstruir, utilizando os instrumentos científicos da moderna pesquisa histórica. Considerando-se o estado fragmentário das nossas fontes e da natureza, muitas vezes indirecta, dos argumentos que devemos usar, este Jesus histórico será sempre um constructo científico, uma abstracção teórica que não coincide, nem pode coincidir, com a realidade plena do Jesus de Nazaré que, de facto, viveu e trabalhou na Palestina, no primeiro século da nossa era. Com a iluminação da fé sentimo-lo como nosso contemporâneo e vida da nossa vida mais profunda. O Jesus histórico não é o Jesus real. A própria noção de real é enganosa. Como observa o investigador citado, com humor, existem tantos livros sobre Jesus que dariam para três vidas e um budista pecador poderia muito bem ser condenado a passar as próximas três incarnações lendo-os todos [1].
Chegámos ao Natal de 2022 com milhões de migrantes que fogem da guerra e da fome. No 1.º Domingo do Advento (27/11/2022), deparámos com um texto do profeta Isaías que nos obriga a nunca desesperar da paz. O texto é um sonho. Seria importante que, neste dia, se transformasse no sonho activo de todas as pessoas de boa vontade. Reza assim: Ele, o Senhor, nos ensinará os seus caminhos e nós andaremos pelas suas veredas. Ele julgará as nações e dará as suas leis a muitos povos, os quais transformarão as suas espadas em relhas de arados e as suas lanças, em foices. Uma nação não levantará a espada contra outra e não se adestrarão mais para a guerra. Vinde, caminhemos a esta luz de Deus.
A questão da paz não pode ser deixada só a Deus que cuida de nós porque, sem entrarmos pelo desejo e pelas obras em modificar o que parece impossível, a vontade pacificadora de Jesus sai sempre frustrada.
A liturgia do Natal e os milhões de boas festas distribuídos, nesta quadra, devem incitar-nos a criar movimentos de conversão, a nível local e mundial. O apelo do Presidente da Ucrânia, à realização de uma Cimeira Mundial da Paz, durante este Inverno, deve encontrar eco em todas as pessoas de boa vontade e em todos os dirigentes políticos, crentes ou não, uma adesão fervorosa.
Como dizia o profeta Isaías, não se pode desejar a paz e continuar com os negócios da guerra. A indústria bélica deve ser convertida em iniciativas de reconstrução e desenvolvimento para todos, sobretudo para os mais ofendidos. A televisão oferece-nos imagens da destruição de cidades inteiras.
2. Eduardo Jorge Madureira apresentou, no 7Margens (18/12/2022), um artigo, a partir de um placard das Oficinas de S. José, em Braga, sobre o desejo de acabar com as guerras. Como escreveu o Papa Francisco, "toda a guerra deixa o mundo pior do que o encontrou. A guerra é um fracasso da política e da humanidade, uma rendição vergonhosa, uma derrota perante as forças do mal" (Fratelli tutti).
Este extracto foi citado, no diário italiano Corriere della Sera (14/12/2022), por Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio, num artigo em que explica por que é necessário propor uma trégua de Natal na guerra da Ucrânia.
O dia de Natal, quando se completam dez meses de agressão russa, que transformou a Ucrânia num país devastado, "marcado pela morte e pela dor", deveria ser assinalado em paz, ao abrigo, pelo menos momentâneo, do sofrimento causado pela brutalidade da guerra.
"Se não houver trégua de Natal, será uma derrota do cristianismo", considera o antigo ministro italiano da Cooperação Internacional e Integração, esclarecendo que a iniciativa permitiria salvar vidas humanas e contribuiria para tornar presente que existe algo que "transcende a lógica da luta (o Natal por exemplo)". Uma trégua ofereceria um momento geral de alívio e esse momento de paz possibilitaria igualmente que se olhasse para o futuro.
Uma trégua de Natal não é uma proposta nova. Andrea Riccardi recordou dois momentos do século XX em que foi observada. Durante a I Guerra Mundial, Bento XV propôs um armistício natalício em 1914, havendo o registo de episódios significativos de confraternização na frente franco-alemã. Em 1967, houve uma trégua de Natal na guerra do Vietname – e as armas também foram silenciadas para assinalar a festa budista do Têt (Ano Novo vietnamita). Paulo VI, lembra ainda o colunista do Corriere della Sera, interveio a propósito do conflito no Vietname, pedindo uma trégua susceptível de se transformar num cessar-fogo definitivo.
Inspirado por S. Francisco de Assis, Charles de Foucauld e "por outros irmãos que não são católicos", entre os quais Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Mohandas Gandhi, o Papa Francisco tinha pedido, na Fratelli Tutti, que se adoptasse "a cultura do diálogo como caminho; a colaboração comum como conduta; o conhecimento mútuo como método e critério".
O caminho encontra-se bloqueado e a fúria cega de Vladimir Putin contra civis indefesos não parece querer abrandar, como ainda sábado, 17, era amplamente noticiado. Andrea Riccardi preconiza que, mesmo assim, deve ser feita uma vigorosa proposta pública de trégua. Sem ela, poderão parecer em vão os votos de um Bom Natal.
Cinquenta anos depois do horroroso Massacre de Wiriyamu (Norte de Moçambique), António Costa, na sua viagem oficial a Moçambique, em Setembro, assumiu Wiriyamu como indesculpável; agora, pela primeira vez, um Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, condena o mesmo massacre, assim como o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva. As três figuras cimeiras do Estado português não só repudiaram esse horror como pediram perdão às vítimas [2]. A Igreja em Moçambique estava dividida quanto à atitude a assumir perante a guerra colonial e os seus massacres. Como a presença de missionários estrangeiros era relevante, estes não estavam presos ao nacionalismo colonial, embora alguns missionários portugueses tivessem seguido o mesmo caminho [3].
3. Em todas as suas expressões, ao longo dos séculos, o Natal é sempre a celebração de Cristo Jesus, a nossa paz. De vários povos fez um só povo, derrubando o muro de separação e suprimindo, na sua própria carne, a inimizade. Veio e anunciou a Paz aos que estavam longe e aos que estavam perto. Já não há estrangeiros e nacionais, mas todos membros da mesma família de Deus [4].
Teimamos em contrariar o desígnio de Cristo e seguir o reino da estupidez, o império da guerra. Continuamos, no entanto, a acreditar que a paz vencerá. Por isso, Boas Festas!
Chegámos ao Natal de 2022 com milhões de migrantes que fogem da guerra e da fome. No 1.º Domingo do Advento (27/11/2022), deparámos com um texto do profeta Isaías que nos obriga a nunca desesperar da paz. O texto é um sonho. Seria importante que, neste dia, se transformasse no sonho activo de todas as pessoas de boa vontade. Reza assim: Ele, o Senhor, nos ensinará os seus caminhos e nós andaremos pelas suas veredas. Ele julgará as nações e dará as suas leis a muitos povos, os quais transformarão as suas espadas em relhas de arados e as suas lanças, em foices. Uma nação não levantará a espada contra outra e não se adestrarão mais para a guerra. Vinde, caminhemos a esta luz de Deus.
A questão da paz não pode ser deixada só a Deus que cuida de nós porque, sem entrarmos pelo desejo e pelas obras em modificar o que parece impossível, a vontade pacificadora de Jesus sai sempre frustrada.
A liturgia do Natal e os milhões de boas festas distribuídos, nesta quadra, devem incitar-nos a criar movimentos de conversão, a nível local e mundial. O apelo do Presidente da Ucrânia, à realização de uma Cimeira Mundial da Paz, durante este Inverno, deve encontrar eco em todas as pessoas de boa vontade e em todos os dirigentes políticos, crentes ou não, uma adesão fervorosa.
Como dizia o profeta Isaías, não se pode desejar a paz e continuar com os negócios da guerra. A indústria bélica deve ser convertida em iniciativas de reconstrução e desenvolvimento para todos, sobretudo para os mais ofendidos. A televisão oferece-nos imagens da destruição de cidades inteiras.
2. Eduardo Jorge Madureira apresentou, no 7Margens (18/12/2022), um artigo, a partir de um placard das Oficinas de S. José, em Braga, sobre o desejo de acabar com as guerras. Como escreveu o Papa Francisco, "toda a guerra deixa o mundo pior do que o encontrou. A guerra é um fracasso da política e da humanidade, uma rendição vergonhosa, uma derrota perante as forças do mal" (Fratelli tutti).
Este extracto foi citado, no diário italiano Corriere della Sera (14/12/2022), por Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio, num artigo em que explica por que é necessário propor uma trégua de Natal na guerra da Ucrânia.
O dia de Natal, quando se completam dez meses de agressão russa, que transformou a Ucrânia num país devastado, "marcado pela morte e pela dor", deveria ser assinalado em paz, ao abrigo, pelo menos momentâneo, do sofrimento causado pela brutalidade da guerra.
"Se não houver trégua de Natal, será uma derrota do cristianismo", considera o antigo ministro italiano da Cooperação Internacional e Integração, esclarecendo que a iniciativa permitiria salvar vidas humanas e contribuiria para tornar presente que existe algo que "transcende a lógica da luta (o Natal por exemplo)". Uma trégua ofereceria um momento geral de alívio e esse momento de paz possibilitaria igualmente que se olhasse para o futuro.
Uma trégua de Natal não é uma proposta nova. Andrea Riccardi recordou dois momentos do século XX em que foi observada. Durante a I Guerra Mundial, Bento XV propôs um armistício natalício em 1914, havendo o registo de episódios significativos de confraternização na frente franco-alemã. Em 1967, houve uma trégua de Natal na guerra do Vietname – e as armas também foram silenciadas para assinalar a festa budista do Têt (Ano Novo vietnamita). Paulo VI, lembra ainda o colunista do Corriere della Sera, interveio a propósito do conflito no Vietname, pedindo uma trégua susceptível de se transformar num cessar-fogo definitivo.
Inspirado por S. Francisco de Assis, Charles de Foucauld e "por outros irmãos que não são católicos", entre os quais Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Mohandas Gandhi, o Papa Francisco tinha pedido, na Fratelli Tutti, que se adoptasse "a cultura do diálogo como caminho; a colaboração comum como conduta; o conhecimento mútuo como método e critério".
O caminho encontra-se bloqueado e a fúria cega de Vladimir Putin contra civis indefesos não parece querer abrandar, como ainda sábado, 17, era amplamente noticiado. Andrea Riccardi preconiza que, mesmo assim, deve ser feita uma vigorosa proposta pública de trégua. Sem ela, poderão parecer em vão os votos de um Bom Natal.
Cinquenta anos depois do horroroso Massacre de Wiriyamu (Norte de Moçambique), António Costa, na sua viagem oficial a Moçambique, em Setembro, assumiu Wiriyamu como indesculpável; agora, pela primeira vez, um Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, condena o mesmo massacre, assim como o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva. As três figuras cimeiras do Estado português não só repudiaram esse horror como pediram perdão às vítimas [2]. A Igreja em Moçambique estava dividida quanto à atitude a assumir perante a guerra colonial e os seus massacres. Como a presença de missionários estrangeiros era relevante, estes não estavam presos ao nacionalismo colonial, embora alguns missionários portugueses tivessem seguido o mesmo caminho [3].
3. Em todas as suas expressões, ao longo dos séculos, o Natal é sempre a celebração de Cristo Jesus, a nossa paz. De vários povos fez um só povo, derrubando o muro de separação e suprimindo, na sua própria carne, a inimizade. Veio e anunciou a Paz aos que estavam longe e aos que estavam perto. Já não há estrangeiros e nacionais, mas todos membros da mesma família de Deus [4].
Teimamos em contrariar o desígnio de Cristo e seguir o reino da estupidez, o império da guerra. Continuamos, no entanto, a acreditar que a paz vencerá. Por isso, Boas Festas!
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
25 Dezembro 2022
[1] Cf. John P. Meier, Um Judeu Marginal. Repensando o Jesus histórico, Imago, 1993, pp. 11-41. Como diz Agustina Bessa-Luís, A História é uma ficção controlada.
[2] Cf. Ana Sá Lopes, Cinquenta anos depois, Wiriyamu já aconteceu. O mito do lusotropicalismo está a acabar?, PÚBLICO 18/12/2022
[3] Cf. Fernando Marques Mendes, Os padres do Macúti, a guerra colonial e a denúncia dos massacres de Mukumbura, 7Margens, 3/9/2019
[4] Cf. Ef 2
25 Dezembro 2022
[1] Cf. John P. Meier, Um Judeu Marginal. Repensando o Jesus histórico, Imago, 1993, pp. 11-41. Como diz Agustina Bessa-Luís, A História é uma ficção controlada.
[2] Cf. Ana Sá Lopes, Cinquenta anos depois, Wiriyamu já aconteceu. O mito do lusotropicalismo está a acabar?, PÚBLICO 18/12/2022
[3] Cf. Fernando Marques Mendes, Os padres do Macúti, a guerra colonial e a denúncia dos massacres de Mukumbura, 7Margens, 3/9/2019
[4] Cf. Ef 2