Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO de hoje
Quando ouvi "Deus cuida de mim", lembrei-me que, desde o Génesis ao Apocalipse, passando pelo capítulo 25 de S. Mateus e pelo capítulo 10 de S. Lucas, entre outros, me pede para eu não me esquecer desta sua interrogação: que fizeste do teu irmão?
1. Não sabemos qual será o futuro do Cristianismo na Europa. A conjugação da liberdade religiosa com os movimentos migratórios está a modificar, continuamente, o seu panorama religioso, embora a ritmos diferentes segundo os países. Espero que os cristãos acordem para a afirmação da sua identidade, como nos lembrou o Papa Francisco, desde o manifesto do seu pontificado, com a fervorosa e lúcida exortação apostólica, A Alegria do Evangelho.
O Presépio, inspirado nos chamados “Evangelhos da Infância” (começo dos evangelhos de S. Mateus e de S. Lucas), é obra de S. Francisco de Assis. Tomás de Celano, o seu primeiro biógrafo, revelou que ele se referia ao Natal como a “festa das festas” e celebrava-a com “devoção inenarrável”. Três anos antes de morrer, em 1223, começou a representar o nascimento de Jesus com o fervor poético da sua imaginação cristificada. Refigurado e desfigurado ao longo dos tempos, o presépio nunca mais foi esquecido.
É verdade que, para as primeiras comunidades cristãs e não só, a “festa das festas” era a Páscoa, a misteriosa flor da “vida-dada” que venceu a morte. Mas ele sabia que o nascimento dos seres humanos, em todos os povos e culturas, é o primeiro fruto do amor que reedita a criação do mundo. Enquanto houver crianças amadas, há presente e há futuro.
Os textos messiânicos de Isaías que tenho evocado nestas crónicas, escolhidos para o tempo litúrgico do Advento, são poemas para sonhar um mundo novo, a partir do que eles chamam o “ramo do tronco de Jessé” (pai de David) e que os cristãos interpretaram como antepassado de Jesus [1].
Como diz Frederico Lourenço, na bela introdução aos Quatro Evangelhos, “por terem sido escritos num grego despretensioso, sem vestígio de sumptuosidade verbal dos grandes autores helénicos, é provável que estes quatro textos nem merecessem ao leitor culto da época o alto estatuto de literatura. No entanto, estes textos conquistaram o mundo antigo, tanto grego como romano. Lendo-os dois mil anos depois, não é difícil perceber porquê. Sobre um desses textos já se escreveu que se trata do mais divino dos livros divinos: na verdade, essa descrição assenta a qualquer um deles. São textos que – com a sua mensagem sublime veiculada por palavras cuja beleza desarmante ainda deixa arrepiado quem os leu e os releu ao longo de uma vida inteira – estão simplesmente numa categoria à parte”.
E acrescenta: “Apesar de terem sido lidos, copiados à mão durante séculos e depois impressos milhões de vezes; apesar de ao longo de dois milénios, estes textos terem mudado a vida de um número incontável de pessoas, sobre estes quatro textos falta-nos saber, ainda hoje, quase tudo.”
Note-se que os quatro Evangelhos canónicos não foram os primeiros escritos cristãos. Quando estes foram escritos, já existiam muitas comunidades cristãs que viviam das narrativas de quem tinha conhecido o próprio Jesus, a Palavra da Vida, como lhe chama S. João [2]. S. Lucas, na dedicatória da sua narrativa, confessa que já circulavam várias outras. Ele vai fazer trabalho de investigador [3].
As Cartas de S. Paulo são anteriores aos quatro Evangelhos. O próprio confessa, na 1.ª Carta aos Coríntios, que transmite a fé na Ressurreição de Cristo como ele a recebeu: apareceu a Cefas e depois aos Doze. Em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos, de uma só vez, a maior parte dos quais ainda vive, enquanto alguns já morreram. Depois apareceu a Tiago e, a seguir, a todos os Apóstolos. “Em último lugar, apareceu-me também a mim, como a um aborto. É que eu sou o menor dos apóstolos, nem sou digno de ser chamado Apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus” [4]. Na mesma Carta, repreende com veemência os que já se reuniam para celebrar a Ceia do Senhor (a Eucaristia), porque tratavam de forma diferente os ricos e os pobres [5].
2. Existe um Evangelho, o de S. Marcos, onde não há Natal. Começa com João Baptista e de uma forma bastante desenvolvida. Ele representava uma corrente do judaísmo que não se satisfazia com a religião do Templo de Jerusalém. O banho no rio Jordão significava o culminar de um percurso de conversão. Jesus é apresentado como fazendo parte dessa corrente, pois também Ele foi baptizado por João. Tem todo o aspecto de ser um facto histórico, não só porque consta nos quatro Evangelhos, mas porque complicava a identidade de Jesus. Os discípulos de João poderiam sempre dizer, não foi o vosso mestre a baptizar o nosso, mas foi João que baptizou o vosso mestre.
Nesse cenário, porém, acontece o insólito: Jesus, depois de sair da água, entrou em oração, isto é, abriu-se ao mistério de Deus. Teve uma experiência que mudou completamente o rumo da sua vida e o desligou do caminho e das exigências de João. Este era conhecido pela sua austeridade e pelas ameaças divinas que pregava para quem o não seguisse. Jesus, pelo contrário, ouve uma voz interior que lhe vem do mais íntimo, figurada como pomba, voz do Céu: “Tu és o meu filho amado, em ti me alegro.”
Não quis fazer da sua experiência filial algo de exclusivo. Pelo contrário, interpretou-a “como a missão” de revelar que Deus não era nem como a religião oficial nem como a pregação de João O representavam. Desse Céu não vêm ameaças, só podem vir as maiores declarações de amor. Isto diz-se depressa, mas implicava que era o próprio Jesus que tinha de alterar as imagens do messianismo em que fora educado. Foi para o deserto e, aí, tornou-se-lhe evidente que o caminho da dominação económica, política e religiosa, era diabólico. Tinha de romper, para sempre, com essas tentações que foram, depois, o quebra-cabeças da sua relação com os discípulos.
3. Ao terminar os parágrafos anteriores, mandaram-me um poema de Kleber Lucas, cantado por ele e por Caetano Veloso. Retenho: “Eu preciso aprender mais de Deus/ Porque Ele é quem cuida de mim// Se uma porta se fecha aqui/ Outras portas se abrem ali/ …Deus cuida de mim/ Na sombra das Suas asas/ Deus cuida de mim/ Eu amo a Sua casa/ E não ando sozinho/ Não estou sozinho, pois sei/ Deus cuida de mim…”
A alegria deste poema é realçada, não apenas pela voz de Caetano Veloso e de Kleber, mas também pela pequena orquestra de jovens, raparigas e rapazes.
Quando ouvi Deus cuida de mim, lembrei-me de que, desde o Génesis ao Apocalipse, passando pelo capítulo 25 de S. Mateus e pelo capítulo 10 de S. Lucas, entre outros, me pede para eu não me esquecer desta sua interrogação: “Que fizeste do teu irmão?”
A alegria verdadeiramente humana nasce da partilha. Esta é a mensagem de Natal, diz a liturgia deste domingo.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. Genealogia de Jesus, segundo S. Mateus e S. Lucas com perspectivas diferentes porque, na de Mateus, é a história de Israel e, na de Lucas, é a história da humanidade.
[2] 1Jo 1, 1-4.
[3] Lc 1, 1-4; não se contentou, escreveu depois a 1.ª história da Igreja (Actos dos Apóstolos).
[4] 1Cor 15.
[5] 1Cor 11, 17-34. É o primeiro escrito que nos chegou da instituição da Eucaristia.