segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Não a um Deus de mortos, mas de ressuscitados

Crónica de Bento Domingues 
no PÚBLICO

Um poema não explica nem se explica. Sugere e liberta a imaginação para viver e sonhar os nossos desejos de felicidade.

1. O ser humano não é apenas muito complexo. É misterioso. Como escreveu Anselmo Borges, para tentar reconhecê-lo, em todas as suas dimensões, seria preciso convocar todos os saberes. “Não é ele, de facto, como bem viram Aristóteles e Tomás de Aquino, de algum modo todas as coisas? Quando questionamos ‘O que é que eu sou? Quem sou?’, é necessário apelar para o concurso das ciências da natureza, da cosmologia, da física, da química, da paleontologia, da embriologia, da neurologia, da etologia, da medicina, da linguística, da sociologia, da sociobiologia, da história, das artes, da economia, das ciências políticas e jurídicas, da filosofia, da teologia...” [1].
Depois de tentar responder a todas as perguntas, de todas as ciências, de todas as filosofias e de todas as teologias, ficamos sobretudo com uma maior consciência dos limites do nosso conhecimento. É sempre infinitamente mais o que ignoramos do que aquilo que conhecemos. Mesmo as pessoas que chegam aos 100 anos, e os ultrapassam, são confrontadas com a morte, que suscita, em familiares e amigos, mais perguntas e, sobretudo, a pergunta das perguntas: qual o sentido da vida de cada um e da história humana?
As celebrações dominicais da fé cristã não deveriam separar o cultual do cultural sempre em mudança. Devem ajudar-nos a descobrir a significação das três dimensões essenciais da vida humana, em processo de conversão permanente, para não sermos escravos nem do passado, nas suas diferentes expressões, nem da actualidade evanescente, nem dos sonhos do futuro sem raízes. De todas as dimensões, devemos colher aquilo que ajuda a viver, em profundidade e abertura, o nosso presente.
Há formas e fórmulas de celebração que hoje não dizem nada, não interpelam ninguém, sofreram uma tal banalização que já não se encontra nelas uma motivação e uma fonte para alimentar a esperança do nosso dia-a-dia.
No passado dia 1 deste mês, fomos confrontados com o Apocalipse, o livro da revelação dos motivos da esperança, atribuído a S. João. É um poema fantástico, um poema de consolação para todos os que na história humana foram humilhados e perseguidos. Desse imenso poema, foi escolhido um fragmento para a celebração de Todos os Santos, não apenas dos santos canonizados, mas dos santos de toda a humanidade, de todas as épocas, de todas as religiões e sem religião, que ignoramos e com os quais nos cruzámos sem saber o mistério que os habita. A vida tem sentido porque a última palavra não é a morte, é a vitória sobre a morte. Vale a pena ler esse fragmento:
“Eu, João, vi um Anjo que subia do Nascente, trazendo o selo do Deus vivo. Ele clamou em alta voz aos quatro Anjos, a quem foi dado o poder de causar dano à terra e ao mar. Não causeis dano à terra nem ao mar, nem às árvores, até que tenhamos marcado na fronte os servos do nosso Deus. E ouvi o número dos que foram marcados: cento e quarenta e quatro mil, de todas as tribos dos filhos de Israel. Depois disto, vi uma multidão imensa que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas. Estavam de pé, diante do trono e na presença do Cordeiro, vestidos com túnicas brancas e de palmas na mão. E clamavam em alta voz: ‘A salvação ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro.’
“Todos os Anjos formavam círculos em volta do trono, dos Anciãos e dos quatro Seres Vivos. Prostraram-se diante do trono, de rosto por terra, e adoraram a Deus, dizendo: ‘Ámen!’ A bênção e a glória, a sabedoria e a acção de graças, a honra, o poder e a força ao nosso Deus, pelos séculos dos séculos. Ámen!’ Um dos Anciãos tomou a palavra e disse-me: ‘Esses que estão vestidos de túnicas brancas, quem são e donde vieram?’ Eu respondi-lhe: ‘Meu Senhor, vós é que o sabeis. Ele disse-me: ‘São os que vieram da grande tribulação, os que lavaram as túnicas e as branquearam no sangue do Cordeiro'” [2].
Um poema não explica nem se explica. Sugere e liberta a imaginação para viver e sonhar os nossos desejos de felicidade.

2. Fala-se muito, e com muita razão, da dignidade do ser humano, e observamos, todos os dias, essa dignidade espezinhada nas formas mais horríveis. Os cristãos têm novos motivos para lutar contra essas violações. A Primeira Carta de S. João, convocada para essa mesma celebração, realça a teologia dessa dignidade: “Vede que amor tão grande o Pai nos concedeu, a ponto de nos podermos chamar filhos de Deus; e realmente o somos! Caríssimos, agora já somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. O que sabemos é que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é” [3].
Não existe situação nenhuma que justifique o abandono desta esperança. S. Mateus e S. Lucas contam que, perante as multidões que o seguiam, Jesus resolveu evangelizar os seus discípulos, sequiosos de poder, revelando-lhes, contra todas as aparências, quem são aqueles e aquelas que serão coroados de felicidade, de bem-aventuranças. São os pobres, os desprendidos dos desejos de riqueza, os mansos, os aflitos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os que promovem a paz, os que são perseguidos por causa da justiça. Bem-aventurados quando vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e regozijai-vos porque será grande a vossa recompensa nos céus. Foi também assim que perseguiram os profetas que vieram antes de vós [4].

3. Neste domingo, continua a insistência na esperança semeada pela festa de Todos os Santos e de todos os que nos precederam de toda a humanidade. A surpresa deste dia é uma pergunta – nascida de uma história cultural – para atrapalhar Jesus. Uma mulher casou, sucessivamente, com sete irmãos que foram morrendo sem deixar descendência. Por fim, morreu também a mulher. E veio a pergunta: “De qual deles será ela esposa na ressurreição, uma vez que os sete a tiveram por mulher?
Resposta de Jesus: “Não transportemos para a vida futura costumes deste nosso mundo. Os que nasceram da ressurreição também são filhos de Deus. Sem a saber explicar, o cristão não pode negar a ressurreição, pois até Moisés a deu a entender no episódio da sarça ardente, quando chama ao Senhor o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob. Não é um Deus de mortos, mas de vivos, porque para Ele todos estão vivos [5].
Não se deveria esquecer a grande revelação deste dia. Deus não morreu. É e será sempre o Deus da Vida.

Frei  Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Padre Anselmo Borges, 1 e 2 de Novembro: a pergunta pelo sentido, in DN, 29.10.2022
[2] Ap 7, 2-4.9-14
[3] Cf. 1Jo 3, 1-3 – A Deus nunca ninguém o viu!
[4] Cf. Mt 5, 1-12; Lc 6, 20-23
[5] Cf. Lc 20, 27-38

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue