Crónica de Bento Domingues
Continua a verificar-se a triste lamentação do Nazareno perante a visão mesquinha dos seus discípulos: “Pobres sempre tereis entre vós!”
1. Durante muito tempo, a Igreja só era notícia devido aos crimes eclesiásticos da pedofilia. Foi e continua a ser uma questão fundamental e que nunca deverá ser esquecida, como acaba de revelar a Conferência Episcopal Francesa. No entanto, se a Igreja Católica sofreu e sofre por esses factos e pelas suas consequências, esperamos que a Comissão Independente continue o seu trabalho e tenha cada vez mais apoio de todas as instâncias do mundo católico.
Seria, no entanto, um erro grave que essa desgraça paralisasse os movimentos de revisão de vida, de conversão e de inovação missionária. O Papa Francisco é o primeiro a dar o exemplo de prosseguir simultaneamente a renovação da Cúria com o inédito contributo das mulheres, em lugares de decisão, de praticar novas formas de intervir na sociedade, na defesa dos mais esquecidos, na escuta e apoio dos movimentos populares. Suscita iniciativas criadoras no campo do diálogo inter-religioso, na procura de novos caminhos para a paz no meio dos conflitos e violências das guerras e das suas trágicas consequências.
Seria, no entanto, um erro grave que essa desgraça paralisasse os movimentos de revisão de vida, de conversão e de inovação missionária. O Papa Francisco é o primeiro a dar o exemplo de prosseguir simultaneamente a renovação da Cúria com o inédito contributo das mulheres, em lugares de decisão, de praticar novas formas de intervir na sociedade, na defesa dos mais esquecidos, na escuta e apoio dos movimentos populares. Suscita iniciativas criadoras no campo do diálogo inter-religioso, na procura de novos caminhos para a paz no meio dos conflitos e violências das guerras e das suas trágicas consequências.
Entre o dia 3 e 6 deste mês, o Papa esteve no Bahrein, no Fórum do Diálogo, Oriente e Ocidente em prol da Coexistência Humana. Para além de todos os contactos, fez o discurso de encerramento, cujo alcance exige uma outra crónica.
A pandemia impediu a manifestação de muitas actividades da sociedade e da Igreja. Verificamos, agora, um fervoroso despertar cultural. Para além das referências editoriais que já aqui foram feitas, quero destacar algumas publicações absolutamente notáveis: Rastos Dominicanos de Portugal para o Mundo [1]; A Teologia face aos Desafios de África hoje [2]; Valores e Religiosidade em Portugal. Comportamentos e Atitudes Geracionais [3]; Os Dialetos das Imagens: Discursos do Sagrado e do Profano [4]; Metamorfose Necessária. Reler São Paulo [5]. Isto sem esquecer a publicação de 70 Anos do Movimento de Renovação de Arte Religiosa e a 21.ª Edição do Festival Internacional de Música Sacra, a realizar no Vaticano de 12 a 15 deste mês.
Neste domingo, além de outros acontecimentos relevantes, da sociedade e da Igreja, como seja a Cimeira do Clima, no Egipto (6-18/11/2022), não podemos esquecer a VI Jornada Mundial dos Pobres para a erradicação da pobreza sempre vergonhosamente adiada. A mensagem que lhe dedicou o Papa Francisco precisa de ser meditada para inspirar novas decisões com medidas concretas.
Desde a pregação dos profetas do Antigo Testamento, passando pela radicalização feita por Jesus Cristo e pelo testemunho interpelante da comunidade exemplar de que falam Os Actos dos Apóstolos — na qual não havia nenhum indigente porque praticavam, entre eles, a partilha de todos os seus recursos [6] —, passando pelas duríssimas denúncias dos chamados “Padres da Igreja”, contamos com o exemplo irradiante de S. Francisco de Assis e do recém-canonizado irmão Carlos de Foucauld. Sem nunca esquecer as obras de misericórdia de inumeráveis cristãos e não cristãos em todos os tempos. Continua, porém, a verificar-se a triste lamentação do Nazareno perante a visão mesquinha dos seus discípulos: “Pobres sempre tereis entre vós!”
Não é uma fatalidade. É apenas a verificação da nossa resistência à erradicação da pobreza desumana e humilhante.
2. O que seria necessário fazer para que a celebração deste domingo representasse algo de novo e não apenas a repetição de uma data litúrgica sem consequências?
São possíveis várias propostas viáveis. Podia-se começar por organizar a Liturgia da Palavra, a partir de extractos da Mensagem do Papa para Este Domingo.
Por exemplo, para a 1.ª leitura seria ajustado destacar o contexto actual: “Há alguns meses, o mundo estava a sair da tempestade da pandemia, mostrando sinais de recuperação económica que se esperava voltasse a trazer alívio a milhões de pessoas empobrecidas pela perda do emprego. Abria-se uma nesga de céu sereno que, sem esquecer a tristeza pela perda dos próprios entes queridos, prometia ser possível voltar finalmente às relações interpessoais directas, encontrar-se sem embargos nem restrições. Mas eis que uma nova catástrofe assomou no horizonte, impondo ao mundo um cenário diferente.
“A guerra na Ucrânia veio juntar-se às guerras regionais que, nestes anos, têm produzido morte e destruição. Aqui, porém, o quadro apresenta-se mais complexo devido à intervenção directa duma superpotência, que pretende impor a sua vontade contra o princípio da autodeterminação dos povos.”
Depois da 1.ª leitura, seria o momento de cantar o Magnificat: Cumulou de bens os famintos e despediu ricos de mãos vazias…
Para a 2.ª leitura, podia ser a passagem seguinte: “No caso dos pobres, não servem retóricas, mas arregaçar as mangas e pôr em prática a fé através dum envolvimento directo, que não pode ser delegado a ninguém. (…) Entretanto, não se trata de ter um comportamento assistencialista com os pobres, como muitas vezes acontece; naturalmente, é necessário empenhar-se para que a ninguém falte o necessário. Não é o activismo que salva, mas a atenção sincera e generosa que me permite aproximar dum pobre como de um irmão que me estende a mão para que acorde do torpor em que caí.”
3. A leitura do Evangelho pode ser mais concreta: “Urge encontrar estradas novas que possam ir além da configuração daquelas políticas sociais ‘concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres e muito menos inserida num projeto que reúna os povos’ [7]. Em vez disso, é preciso tender para assumir a atitude do Apóstolo, que podia escrever aos Coríntios: ‘Não se trata de, ao aliviar os outros, vos fazer entrar em apuros, mas sim de que haja igualdade (2Cor 8, 13). É o amor recíproco que nos faz carregar os fardos uns dos outros, para que ninguém seja abandonado ou excluído’.”
“A pobreza que mata é a miséria, filha da injustiça, da exploração, da violência e da iníqua distribuição dos recursos. É a pobreza desesperada, sem futuro, porque é imposta pela cultura do descarte que não oferece perspectivas nem vias de saída.”
A homilia, além do convite a uma leitura integral desta mensagem, deveria procurar que a comunidade encontrasse os caminhos possíveis para a incarnar sem paternalismo clerical.
Esta proposta vai beber à antiga e sempre nova regra de ouro: faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti nas mesmas circunstâncias.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Coordenação de: Cristina Costa Gomes e Isabel Murta Pina, José Manuel Fernandes, O.P. e Maria João Pereira Coutinho, Universidade Católica Editora, Lisboa 2022.
[2] I Semana Teológica Internacional de Luanda (STIL), Coordenação de: José Nunes, O.P. e José Paulo, O.P.
[3] Eduardo Duque, Edições Afrontamento, 2022
[4] Aurélio Lopes e Vítor Serrão, com prefácio de Fr. Bento Domingues, Caleidoscópio 2022
[5] José Tolentino Mendonça, Quetzal 2022
[6] Cf. Act 4, 32-35
[7] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti, 169
A pandemia impediu a manifestação de muitas actividades da sociedade e da Igreja. Verificamos, agora, um fervoroso despertar cultural. Para além das referências editoriais que já aqui foram feitas, quero destacar algumas publicações absolutamente notáveis: Rastos Dominicanos de Portugal para o Mundo [1]; A Teologia face aos Desafios de África hoje [2]; Valores e Religiosidade em Portugal. Comportamentos e Atitudes Geracionais [3]; Os Dialetos das Imagens: Discursos do Sagrado e do Profano [4]; Metamorfose Necessária. Reler São Paulo [5]. Isto sem esquecer a publicação de 70 Anos do Movimento de Renovação de Arte Religiosa e a 21.ª Edição do Festival Internacional de Música Sacra, a realizar no Vaticano de 12 a 15 deste mês.
Neste domingo, além de outros acontecimentos relevantes, da sociedade e da Igreja, como seja a Cimeira do Clima, no Egipto (6-18/11/2022), não podemos esquecer a VI Jornada Mundial dos Pobres para a erradicação da pobreza sempre vergonhosamente adiada. A mensagem que lhe dedicou o Papa Francisco precisa de ser meditada para inspirar novas decisões com medidas concretas.
Desde a pregação dos profetas do Antigo Testamento, passando pela radicalização feita por Jesus Cristo e pelo testemunho interpelante da comunidade exemplar de que falam Os Actos dos Apóstolos — na qual não havia nenhum indigente porque praticavam, entre eles, a partilha de todos os seus recursos [6] —, passando pelas duríssimas denúncias dos chamados “Padres da Igreja”, contamos com o exemplo irradiante de S. Francisco de Assis e do recém-canonizado irmão Carlos de Foucauld. Sem nunca esquecer as obras de misericórdia de inumeráveis cristãos e não cristãos em todos os tempos. Continua, porém, a verificar-se a triste lamentação do Nazareno perante a visão mesquinha dos seus discípulos: “Pobres sempre tereis entre vós!”
Não é uma fatalidade. É apenas a verificação da nossa resistência à erradicação da pobreza desumana e humilhante.
2. O que seria necessário fazer para que a celebração deste domingo representasse algo de novo e não apenas a repetição de uma data litúrgica sem consequências?
São possíveis várias propostas viáveis. Podia-se começar por organizar a Liturgia da Palavra, a partir de extractos da Mensagem do Papa para Este Domingo.
Por exemplo, para a 1.ª leitura seria ajustado destacar o contexto actual: “Há alguns meses, o mundo estava a sair da tempestade da pandemia, mostrando sinais de recuperação económica que se esperava voltasse a trazer alívio a milhões de pessoas empobrecidas pela perda do emprego. Abria-se uma nesga de céu sereno que, sem esquecer a tristeza pela perda dos próprios entes queridos, prometia ser possível voltar finalmente às relações interpessoais directas, encontrar-se sem embargos nem restrições. Mas eis que uma nova catástrofe assomou no horizonte, impondo ao mundo um cenário diferente.
“A guerra na Ucrânia veio juntar-se às guerras regionais que, nestes anos, têm produzido morte e destruição. Aqui, porém, o quadro apresenta-se mais complexo devido à intervenção directa duma superpotência, que pretende impor a sua vontade contra o princípio da autodeterminação dos povos.”
Depois da 1.ª leitura, seria o momento de cantar o Magnificat: Cumulou de bens os famintos e despediu ricos de mãos vazias…
Para a 2.ª leitura, podia ser a passagem seguinte: “No caso dos pobres, não servem retóricas, mas arregaçar as mangas e pôr em prática a fé através dum envolvimento directo, que não pode ser delegado a ninguém. (…) Entretanto, não se trata de ter um comportamento assistencialista com os pobres, como muitas vezes acontece; naturalmente, é necessário empenhar-se para que a ninguém falte o necessário. Não é o activismo que salva, mas a atenção sincera e generosa que me permite aproximar dum pobre como de um irmão que me estende a mão para que acorde do torpor em que caí.”
3. A leitura do Evangelho pode ser mais concreta: “Urge encontrar estradas novas que possam ir além da configuração daquelas políticas sociais ‘concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres e muito menos inserida num projeto que reúna os povos’ [7]. Em vez disso, é preciso tender para assumir a atitude do Apóstolo, que podia escrever aos Coríntios: ‘Não se trata de, ao aliviar os outros, vos fazer entrar em apuros, mas sim de que haja igualdade (2Cor 8, 13). É o amor recíproco que nos faz carregar os fardos uns dos outros, para que ninguém seja abandonado ou excluído’.”
“A pobreza que mata é a miséria, filha da injustiça, da exploração, da violência e da iníqua distribuição dos recursos. É a pobreza desesperada, sem futuro, porque é imposta pela cultura do descarte que não oferece perspectivas nem vias de saída.”
A homilia, além do convite a uma leitura integral desta mensagem, deveria procurar que a comunidade encontrasse os caminhos possíveis para a incarnar sem paternalismo clerical.
Esta proposta vai beber à antiga e sempre nova regra de ouro: faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti nas mesmas circunstâncias.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Coordenação de: Cristina Costa Gomes e Isabel Murta Pina, José Manuel Fernandes, O.P. e Maria João Pereira Coutinho, Universidade Católica Editora, Lisboa 2022.
[2] I Semana Teológica Internacional de Luanda (STIL), Coordenação de: José Nunes, O.P. e José Paulo, O.P.
[3] Eduardo Duque, Edições Afrontamento, 2022
[4] Aurélio Lopes e Vítor Serrão, com prefácio de Fr. Bento Domingues, Caleidoscópio 2022
[5] José Tolentino Mendonça, Quetzal 2022
[6] Cf. Act 4, 32-35
[7] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti, 169