segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Dilatar os horizontes

Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO de domingo
 
1. Na crónica anterior, sobre a Jornada Mundial dos Pobres, disse que a Viagem Apostólica do Papa ao Bahrein, para o fórum de diálogo Oriente e Ocidente pela convivência humana, exigia outra crónica. Nesse momento, só tinha em vista o seu famoso discurso no final desse encontro. Entretanto, o próprio Papa veio esclarecer e explicar o sentido dessa sua viagem, na Audiência Geral do passado dia 9, na Praça de S. Pedro [1]. Essa apresentação foi tão incisiva e clarificadora que seria ridículo substituir as palavras do Papa pelas minhas. Com as transcrições que vou recortar nessa apresentação, procuro cumprir a minha promessa, com o título, Dilatar os Horizontes.
Não é meu este título, mas do Papa. Julgo preferível dar-lhe a palavra sobre as razões e motivações que o levaram a acolher a oferta feita pelo rei desta monarquia de dois mares, com a alegria da pequena, mas ecuménica, comunidade cristã.
Ele próprio reconhece que é natural que as pessoas se interroguem: por que quis o Papa visitar esse pequeno país de maioria islâmica? Há muitos países cristãos, por que não vais primeiro a um ou a outro? “Gostaria de responder com três palavras: diálogo, encontro, caminho.”
O diálogo “serve para descobrir a riqueza de quantos pertencem a outros povos, outras tradições, outras crenças. O Bahrein, um arquipélago formado por muitas ilhas, ajudou-nos a compreender que não se deve viver isolando-se, mas aproximando-se. No Bahrein, que são ilhas, aproximaram-se e tocam-se. É a causa da paz que o exige e o diálogo é o oxigénio da paz. Não vos esqueçais disto: o diálogo é o oxigénio da paz”.
Recorda, a propósito, o inspirado acontecimento chave do século XX: “Há quase sessenta anos, o Concílio Vaticano II, falando sobre a construção do edifício da paz, declarou que ela exige que os seres humanos dilatem o espírito mais além das fronteiras da própria nação, deponham o egoísmo nacional e a ambição de dominar sobre os outros países, e fomentem um grande respeito por toda a humanidade, que já avança tão laboriosamente para uma maior unidade.” [2]
Confessa que, no Bahrein, sentiu esta exigência e desejou que, no mundo inteiro, os responsáveis religiosos e civis saibam olhar além das próprias fronteiras, das suas comunidades, para cuidar de todo o conjunto. “Somente assim podem ser enfrentados certos temas universais, por exemplo o esquecimento de Deus, a tragédia da fome, a tutela da criação, a paz. Foi, juntos, que pensámos assim.”

2. O fórum de diálogo Oriente e Ocidente pela convivência humana exortou a escolher o caminho do encontro e a rejeitar o do conflito. Realçou “quanto precisamos disto! Quanta necessidade temos de nos encontrar! Penso na guerra louca – loucura! – de que é vítima a martirizada Ucrânia, e em muitos outros conflitos, que nunca serão resolvidos através da lógica infantil das armas, mas unicamente com a força suave do diálogo. Mas, além da Ucrânia, que é martirizada, pensemos nas guerras que duram há anos, e pensemos na Síria – mais de dez anos! –, pensemos nas crianças do Iémen, pensemos no Myanmar, em todos os lugares! Agora, a mais próxima é a Ucrânia”.
“Para que servem as guerras? Destroem, destroem a humanidade, destroem tudo. Os conflitos não devem ser resolvidos através da guerra.”
Não pode haver diálogo sem a segunda palavra: encontro. “No Bahrein encontrámo-nos. Senti várias vezes o desejo de que haja mais encontros entre cristãos e muçulmanos, que se estreitem relações mais sólidas, que nos interessemos mais uns pelos outros.”
A terceira palavra é caminho. “A viagem ao Bahrein não deve ser vista como um episódio isolado, faz parte de um percurso inaugurado por São João Paulo II, quando foi a Marrocos. Deste modo, a primeira visita de um Papa ao Bahrein representou um novo passo no caminho entre crentes cristãos e muçulmanos, não para nos confundirmos nem para diluir a fé, não. O diálogo não dilui. Serve para construir alianças fraternas em nome do Pai Abraão, que foi peregrino na terra sob o olhar misericordioso do único Deus do Céu, Deus da Paz. Por isso, o lema da viagem era: Paz na terra aos homens de boa vontade.
E por que digo que o diálogo não dilui? Porque para dialogar é necessário ter identidade própria, deve-se partir da própria identidade. Se tu não tiveres identidade, não podes dialogar, porque não entendes nem sequer o que és. Para que um diálogo seja bom, devemos sempre partir da própria identidade, estar cientes da própria identidade, e assim podemos dialogar.”

3. No seu discurso, na conclusão do fórum, o Papa lembrou um paradoxo: “Vivemos tempos em que uma humanidade, interligada como nunca, se apresenta bem mais dividida do que unida. Enquanto a maior parte da população mundial se encontra unida pelas mesmas dificuldades, atormentada por graves crises alimentares, ecológicas e pandémicas, bem como por uma injustiça planetária cada vez mais escandalosa, uns poucos poderosos concentram-se decididamente numa luta por interesses de parte, desenterrando linguagens obsoletas, redesenhando áreas de influência e blocos contrapostos. Tem-se a impressão de assistir a uma cena dramaticamente infantil: no jardim da humanidade, em vez de cuidar do todo, brincamos com o fogo, com mísseis e bombas, com armas que provocam pranto e morte, cobrindo a casa comum de cinzas e de ódio.”
Esse cenário dramático e global não levou o Papa Francisco a esquecer a pequena comunidade cristã que vive, quotidianamente, a trilogia, diálogo, encontro e caminho no Bahrein. Por isso, “o primeiro encontro foi, de facto, ecuménico, de oração pela paz, com o amado Patriarca e Irmão Bartolomeu, e com irmãos e irmãs de várias confissões e ritos. Realizou-se na Catedral, dedicada a Nossa Senhora da Arábia, cuja estrutura evoca uma tenda, aquela em que, segundo a Bíblia, Deus encontrou Moisés no deserto, ao longo do caminho. Os irmãos e irmãs na fé, que encontrei no Bahrein, vivem verdadeiramente a caminho: são, na maioria, trabalhadores imigrantes que, longe de casa, encontram as suas raízes no Povo de Deus e a sua família na grande família da Igreja. É maravilhoso ver os migrantes, filipinos, indianos e de outras partes, cristãos que se reúnem e se apoiam na fé. E vão em frente com alegria, na certeza de que a esperança de Deus não desilude” [3].
Pensando no seu caminho, na sua experiência diária de diálogo, sintamo-nos chamados todos a dilatar os horizontes. Precisamos de corações dilatados, não de corações fechados, duros. Abri os corações, pois somos todos irmãos, para que esta fraternidade humana progrida. Dilatar os horizontes, abrir, alargar os interesses e dedicar-nos ao conhecimento dos outros.
Este encontro só foi possível porque existe uma Declaração do Reino do Bahrein (2017) – de maioria muçulmana – que assenta em cinco princípios: fé e expressão religiosa; liberdade de escolha; determinação da vontade de Deus; direitos e deveres religiosos; e a expressão da fé.
Sem liberdade religiosa não pode haver verdadeira religião.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] www.vatican.va: Audiência Geral de 09.11.2022
[2] Gaudium et Spes, 82
[3] Rm 5, 5

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