Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO de domingo
1. Será fatal o mundo que temos de desigualdades abissais: uns poucos que têm quase tudo e muitos que não têm com que viver? O importante filósofo Michael J. Sandel tem-se esforçado por mostrar que outro mundo não só é possível, mas urgente [1].
A figura emblemática da celebração da Eucaristia deste Domingo é Zaqueu. Quem é ele? S. Lucas, um narrador exímio do Novo Testamento, apresenta um encontro muito cómico com Jesus. É uma história muito antiga, mas cheia de actualidade.
Tendo entrado em Jericó, Jesus atravessava a cidade. Vivia ali um homem rico, chamado Zaqueu, que era chefe de cobradores de impostos. Procurava ver Jesus e não podia, por causa da multidão, pois era de pequena estatura. Correndo à frente, subiu a um sicómoro para o ver, porque Ele devia passar por ali. Quando chegou àquele local, Jesus levantou os olhos e disse-lhe: Zaqueu, desce depressa, pois hoje tenho de ficar em tua casa. Ele desceu imediatamente e acolheu Jesus, cheio de alegria.
Ao verem aquilo, murmuravam todos entre si, dizendo que tinha ido hospedar-se em casa de um pecador. Zaqueu, de pé, disse ao Senhor: Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa, vou restituir-lhe quatro vezes mais. Jesus disse-lhe: Hoje veio a salvação a esta casa, por este ser também filho de Abraão; pois, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido [2].
Zaqueu era um judeu considerado pecador público porque era um traidor ao seu povo, o povo de Deus. Mais ainda, era um chefe de traidores, isto é, de publicanos cobradores de impostos ao serviço do Império Romano. Os judeus observantes da Lei [3] marginalizavam-nos porque eram judeus e, por dinheiro, traíam o seu povo.
Era alguém que se tinha automarginalizado em relação aos movimentos libertadores de Israel. Era, por isso, considerado um pecador especial, um pecador público, um colaborador do inimigo colonialista.
Jesus, com o gesto de se fazer convidado para a casa de Zaqueu, comete também um pecado grave de que já era acusado de comer e beber com os pecadores. Era tornar-se cúmplice participante na situação desses excluídos.
A resposta era muito irónica e habitual: são os doentes que precisam de médico; não vim chamar os justos – como vós vos considerais –, mas sim chamar os pecadores à conversão [4].
A conversão de Zaqueu não pode ser mais radical. Considera que é participante de um sistema de exploração. Era um aproveitador e sente que, para sair dessa situação, não bastam palavras. São precisas acções que traduzam uma viragem radical na sua vida: vai dar metade dos seus bens aos pobres e quatro vezes mais a quem roubou. Considera-se um ladrão, como realmente era.
2. Para a conversão não basta o próprio cumprimento da Lei moisaica. Numa outra história, o jovem rico queria assegurar a vida eterna porque esta estava assegurada pela sua riqueza. Jesus, no entanto, não faz uma distinção entre esta vida e a vida eterna, como o jovem julgava. Eis a história parabólica:
Certo homem de posição perguntou a Jesus: Bom Mestre, que hei-de fazer para alcançar a vida eterna? Respondeu-lhe Jesus: Porque me chamas bom? Ninguém é bom senão Deus. Tu sabes os mandamentos: Não cometerás adultério, não matarás, não roubarás, não levantarás falso testemunho; honra teu pai e tua mãe. Ele retorquiu: Tudo isso tenho cumprido desde a minha juventude. Ouvindo isto, Jesus disse-lhe: Ainda te falta uma coisa: vende tudo o que tens, distribui o dinheiro pelos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-me. Quando isto ouviu, ele entristeceu-se, pois era muito rico. Vendo-o assim, Jesus exclamou: Como é difícil para os que têm riquezas entrar no Reino de Deus! Sim, é mais fácil um camelo – corda grossa usada nos barcos – passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus! Os que o ouviram disseram: Então, quem pode salvar-se? Jesus respondeu: O que é impossível aos homens é possível a Deus [5].
Ninguém se converte sem querer, mas não basta uma veleidade. É uma viragem de tal monta que só a abertura à graça do Espírito de Cristo pode conseguir.
Zaqueu tinha um desejo tão forte do encontro com Jesus que venceu a sua pequena estatura para se encontrar com o espanto que Jesus suscitava. O jovem rico queria mudar alguma coisa para que tudo ficasse na mesma.
3. Pelas histórias que lemos de Jesus, Ele desejava que todos tivessem vida e vida em abundância. Por isso, a sua preferência era pelos marginalizados que, por diversos motivos, estavam excluídos da sociedade religiosa, dos que tinham êxito. Como mostrou Anselmo Borges, Nietzsche julgava o Cristianismo como inimigo da vida porque se tinha transformado num legalismo de exclusão [6]. O seu ódio não era contra Cristo que ele considerava o verdadeiro cristão, mas esse foi crucificado. Esquecia-se do essencial.
Como já disse, segundo S. João, Jesus veio, precisamente, para que todos tivessem vida e vida em abundância. Não tinha nada a ver com a ideia de que o prazer ou faz mal ou é pecado.
Já no Antigo Testamento havia uma corrente, o iaveísmo da sabedoria, que afirmava: Pois diante de ti, o mundo inteiro é como um grão de areia na balança, como a gota de orvalho que de manhã cai sobre a terra. Mas Tu tens compaixão de todos, pois tudo podes
e desvias os olhos dos pecados dos homens, a fim de os levar à conversão. Tu amas tudo quanto existe e não detestas nada do que fizeste; pois, se odiasses alguma coisa, não a terias criado. Mas Tu poupas a todos, porque todos são teus. Tu amas a vida! O teu espírito incorruptível está em todas as coisas! [7].
Como diz a activista consequente, Greta Thunberg, “as mudanças de que precisamos para evitar as piores consequências não virão dos políticos. Tem de haver gente suficiente a exigir a mudança” [4]. Como conseguir essa viragem, essa conversão social? Estamos a fazer o que devemos, como pergunta o já citado filósofo de Harvard?
Zaqueu não esperou pela conversão dos outros. Destruiu, em si mesmo, a vontade de dominar e entregou o fruto do roubo aos pobres, as persistentes vítimas da sociedade.
Importa socializar os bons exemplos!
Frei Bento Domingues
no PÚBLICO
[1] Cf. Michael J. Sandel, O Que o Dinheiro Não Pode Comprar. Os limites morais dos mercados, Editorial Presença, 2015; Justiça. Fazemos o que devemos?, Editorial Presença, 20222; A Tirania do Mérito. O Que Aconteceu ao Bem Comum?, Editorial Presença, 2022.
[2] Lc 19, 1-10
[3] A palavra Lei tem muitos significados, como se pode ver em Xavier Léon-Dufour, Dictionnaire du Nouveau Testament, Seuil, 1975. Nessa época era utilizada sobretudo pelos judeus observantes estritos dos Mandamentos de Deus.
[4] Lc 5, 27-32
[5] Lc 18, 18-27; Mt 19,16-26; Mc 10,17-27
[6] Cf. Padre Anselmo Borges, Nietzsche e Deus, in DN, 06.08.2022
[7] Cf. Sab 11,22 – 12,1
[8] Cf. PÚBLICO, 27/10/2022