Costuma-se dizer que na guerra, em qualquer guerra, a primeira vítima é a verdade. No meio da informação e contrainformação, nas diferentes razões e causas, nos interesses em conflito, pouco sobra para a racionalidade e ainda menos para a verdade, que é mais alcançável pelo diálogo do que pela força. No caso da guerra da Rússia na Ucrânia há outra vítima: a fé ortodoxa.
Foi especialmente doloroso, porque incongruente, ver o presidente Putin na celebração da Páscoa ortodoxa. A Páscoa da Ressurreição transformada em propaganda de morte. Putin com uma vela na mão, luz-vida que faz desaparecer as trevas-morte, enquanto os seus soldados semeiam morte – e sofrem eles próprios às mãos dos ucranianos.
Agora é o Patriarca de Moscovo, Cirilo I, que faz afirmações de estremecer, se as levarmos a sério. Convenientemente faltou ao Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais, no Cazaquistão. Boicotou uma cimeira de paz. Diz o Patriarca, depois da chamada dos trezentos mil reservistas: “Se morrerem pelo país, entrarão no Reino de Deus.” Ou “Acreditamos que este sacrifício lava todos os pecados que a pessoa tenha cometido”. Ele, que já tinha dito, no início da guerra: “Entrámos numa luta que não é apenas física, mas tem um significado metafísico”.
Sabemos que alguns consideram que a Rússia ortodoxa, a “Santa Rússia”, tem uma missão no mundo, uma espécie de cruzada em que ninguém acredita fora da Rússia. Não podemos deixar de repudiar a mistura da fé cristã com o nacionalismo. A religião não pode acolitar o poder político. Perde credibilidade. E o diálogo com os ortodoxos, que foi prioridade para os papas desde Paulo VI, fica mais difícil.
J.P.F.
NOTA: Publicado no Correio do Vouga desta semana