segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Livros do passado para o futuro

Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO

Sem esquecer as questões que sacodem o fenómeno religioso a nível mundial, hoje, desejo evocar algumas das minhas leituras e releituras na praia seca do meu convento, durante o passado mês de Agosto.

1. Recomendei, para as férias, os 4 livros mais famosos do passado e do presente, com o desejo de continuarem a ser a alegria do nosso futuro. Esses livros são os quatro Evangelhos canónicos do Novo Testamento, sem ignorar o contributo dos chamados apócrifos. Embora sejam algo posteriores aos canónicos, tornaram-se uma das grandes fontes da imaginação da pintura cristã através dos séculos[1].
Sem esquecer as questões que sacodem o fenómeno religioso a nível mundial, hoje, desejo evocar algumas das minhas leituras e releituras na praia seca do meu convento, durante o passado mês de Agosto.
Em primeiro lugar, vem um livro que considero o mais importante deste ano: Os Dialectos das Imagens. Discursos do Sagrado e do Profano, de Aurélio Lopes (antropólogo) e Vítor Serrão (historiador de arte). Estes dois autores, bem conhecidos e reconhecidos, realizaram, a quatro mãos, durante a pandemia, uma obra notável.
Como não sou nem antropólogo nem historiador da arte, tive de me remeter para a minha condição de aprendiz de teólogo ao procurar escrever um prefácio que não traísse o desígnio mais profundo desse belo empreendimento.
A teologia deve resistir à tentação de procurar prender o mistério divino e humano de Cristo no mundo das suas interpretações e especulações. As atitudes e parábolas do Nazareno sugerem, não definem. Abrem as portas da inteligência imaginativa e reflexiva, fugindo das prisões dogmáticas para o reino da liberdade criadora.
Fui, entretanto, surpreendido por um livro com o título enigmático, “Vou ficar por aqui até ao fim”, que apresenta A vida e a obra de António Manuel Sousa Fernandes (1936-2019)[2]. Ordenado padre em 1961, em Braga, achou que, nessa diocese, os caminhos estavam um pouco bloqueados. Resolveu, então, ir estudar Direito, primeiro em Coimbra e, depois, em Lisboa, em 1963. Ao dar-se conta das carências de clero, ofereceu-se à Paróquia de Santa Isabel, ficando como coadjutor até 1967. Eram anos de efervescência política, cultural e religiosa. Envolveu-se em várias iniciativas dos chamados católicos progressistas. Não perdeu o seu gosto pela música que voltou a estudar e a praticar. Ainda em Lisboa, em 1967, assinou um manifesto contra a dissolução da cooperativa Pragma e um outro, denunciando a Igreja conivente com o Estado Novo.
Teve de regressar a Braga por imposição de D. Francisco Maria da Silva, que detestava o Vaticano II. Nomeado notário da cúria com residência no Paço Arquiepiscopal, não se deu bem com esse mundo fechado e optou por viver em casa da família.
Tinha redescoberto, em Lisboa, o gosto de ser padre e do trabalho pastoral, e esse gosto não estancou a paixão pela prática musical, pela política, pela cultura. Não renuncia a nenhuma dimensão da sua personalidade plurifacetada. Adere, de alma e coração, ao 25 de Abril e justifica a sua opção pelo socialismo democrático. Foi presidente da Câmara de Braga durante 5 meses, dizendo que foram os piores meses da sua vida. Foi, no entanto, presidente da Assembleia Municipal durante 20 anos.
Sousa Fernandes soube compaginar dimensões que pareciam inconciliáveis. Nele, o padre sentia-se bem nas várias manifestações da cultura moderna, não impedia a sua intervenção política, nem a sua capacidade de organizar e reger grupos de música coral para fazer da liturgia uma festa. Onde outros viam incompatibilidades, ele descobria novas formas de realizar os seus múltiplos talentos ao serviço da sociedade e da Igreja.

2. Tive uma alegria especial em receber três obras sobre a Ordem dos Pregadores, a minha família religiosa mais próxima. Há vários anos pediram-me para fazer um curso a um grupo de noviços e estudantes sobre o carisma dominicano, como carisma de vários carismas, masculinos e femininos. Escolhi alguns aspectos da sua originalidade. A Ordem dos Pregadores, assim designada desde 1217, adoptou desde o começo um regime democrático; aquilo que fazia a sua originalidade, a pregação da graça do Espírito de Cristo, servida pelo estudo aturado, tornou-se um bem de toda a Igreja; a pregação popular do Evangelho, distribuída pelos mistérios do rosário, também não ficou uma propriedade privada dos dominicanos. Oito séculos de grandes inovações na inculturação do Evangelho não deviam ocultar os períodos de decadência e esquecimento da originalidade do seu carisma. Era sobretudo urgente investigar a vergonhosa participação dos dominicanos na Inquisição da Igreja e do Estado.
Frei José Augusto Mourão rodeou-se de historiadores para organizar um Congresso Internacional em torno da Inquisição portuguesa que provocou muitas outras iniciativas[3].

3. No ano 2018, a Província Dominicana de Portugal, assinalou os 600 anos da sua fundação. Entre as diferentes actividades para comemorar a efeméride, o ISTA (Instituto de S. Tomás de Aquino) organizou, juntamente com outros parceiros, um colóquio que intitulou Rastos Dominicanos de Portugal para o Mundo. 600 anos da Província Portuguesa, que representou também uma homenagem a Frei José Augusto Mourão (1947-2011), uma grande figura da semiótica, da poesia e da música litúrgicas.
Como muitas vezes acontece, a publicação das Actas deste colóquio foi demorada porque se esperou que todas as intervenções, dada a sua riqueza e diversidade, pudessem ser incluídas. Importa, agora, dar a conhecer esta herança para que a memória seja fonte de futuro[4].
Sem esperar pelas Actas do Simpósio em homenagem a Frei Francolino Gonçalves, O.P., realizado em Lisboa (20-22/05/2019), a Escola Bíblica de Jerusalém resolveu publicar o seu contributo fundamental para memória daquele português que a prestigiou durante mais de 40 anos, como aluno, professor e investigador[5].
Frei Gonçalo Diniz, O.P. aproveitou a pandemia para escrever uma impressionante narrativa a que deu o nome Breve História dos Frades da Ordem de São Domingos em Portugal. A escolha do título indica que não pretendeu abordar a história de toda a Família Dominicana.
Chegado a este ponto, confesso que calculei muito mal o que desejava fazer. Como diriam os alfacinhas: tentou meter o Rossio na Betesga.


Frei Bento Domingues no PÚBLICO


[1] Cf. Antonio Piñero, Apócrifos del Antiguo y del Nuevo Testamento, Alianza Editorial, 2016
[2] Autores: Maria do Céu Sousa Fernandes, Eduardo Jorge Madureira e Luís Cristóvam.
[3] Inquisição Portuguesa. Tempo, Razão e Circunstância, Prefácio-Edição de Livros e Revistas, LISBOA – São Paulo, 2007; ver tb. Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Ordem de S. Domingos no contexto do Santo Ofício Português, Academia Portuguesa da História, Lisboa 2006, em homenagem a Frei António do Rosário
[4] A publicação destes Rastos Dominicanos vem continuar as Jornadas de História. Os Dominicanos em Portugal (1216-2016), Editadas pelo Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), UCP, Lisboa 2018.
[5] In Memoriam Francolino Gonçalves, O.P. (1943-2017), “Études Bibliques”, PEETERS, Leuven-Paris-Bristol, 2022

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