Crónica de bento Domingues no PÚBLICO
Marta representa o estatuto subordinado da mulher que não tinha acesso ao conhecimento da Palavra de Deus. Era essa a situação com que Jesus estava sempre confrontado e que não aceita.
1. Quem frequenta a Missa dominical, sabe que, normalmente, se confronta com três textos bíblicos e um Salmo. Quando são lidos com alma e competência, são um regalo. Se, além disso, a música e o canto são de boa qualidade estética, a liturgia é um prazer. Aí começa a transfiguração das comunidades e das pessoas.
Neste Domingo, a passagem do Antigo Testamento é uma bela e misteriosa narrativa do livro Génesis sobre uma visita inesperada de Deus a Abraão junto do célebre carvalho de Mambré [1].
Estava Abraão sentado à entrada da sua tenda, no maior calor do dia. Ergueu os olhos e viu três homens de pé em frente dele. Logo que os viu, deixou a entrada da tenda e correu ao seu encontro; prostrou-se por terra e disse: meu Senhor, se agradei aos vossos olhos, não passeis adiante, sem parar em casa do vosso servo. Mandarei vir água para que possais lavar os pés e descansar debaixo desta árvore. Vou buscar um bocado de pão, para restaurardes as forças antes de continuardes o vosso caminho, pois não foi em vão que passastes diante da casa do vosso servo. Eles responderam: faz como disseste.
Repare-se que, até aqui, só há figuras masculinas. O lugar das mulheres é a cozinha e o cuidado das crianças. Na realidade, a figura pública é sempre o homem. Neste caso, o patriarca Abraão é rápido em oferecer a sagrada hospitalidade, mas quem faz a comida é a mulher.
Abraão apressou-se a ir à tenda onde estava Sara e disse-lhe: toma depressa três medidas de flor de farinha, amassa-a e coze uns pães no borralho. Abraão correu ao rebanho e escolheu um vitelo tenro e bom e entregou-o a um servo, que se apressou a prepará-lo. Trouxe manteiga, leite e o vitelo já pronto e colocou-o diante deles; enquanto comiam, ficou de pé junto deles debaixo da árvore.
Entretanto, os hóspedes fazem uma pergunta indiscreta: onde está Sara, tua esposa? Abraão respondeu: está ali na tenda. Um deles disse: passarei novamente pela tua casa daqui a um ano e, então, Sara, tua esposa, terá um filho.
Sara era uma mulher e conhecia o seu estatuto subalterno. Às escondidas, mostrou que não estava desinteressada da conversa dos homens, mas só podia ouvir e calar.
Abraão e Sara eram já velhos, de idade muito avançada, e Sara já não estava em idade de ter filhos. Sara riu-se consigo mesma e pensou: velha como estou, poderei ainda ter esta alegria, sendo também velho o meu senhor?
Deus disse a Abraão: porque está Sara a rir e a dizer: será verdade que eu hei-de ter um filho, velha como estou? Haverá alguma coisa que seja impossível a Deus? Dentro de um ano, nesta mesma época, voltarei à tua casa e Sara terá um filho. Cheia de medo, Sara negou, dizendo: não me ri. Mas Ele disse-lhe: não! Tu riste-te mesmo.
Perante aquela insensatez, ela só pode rir. O seu riso não é castigado, é abençoado porque o amor que Deus nos tem não depende das nossas reacções, mas de Ele ser quem é, o poder invencível do amor.
2. Por vezes, esquece-se que uma coisa era o estatuto social da mulher, outra era o questionamento que elas próprias faziam acerca da ordem social que as humilhava. O riso destrói o ridículo das situações.
No Novo Testamento (NT), Maria, a mãe de Jesus, também recebe a saudação do Anjo com uma interrogação que é a própria alma da teologia, no dizer de Tomás de Aquino: como é que é verdade aquilo que confessamos ser verdade? Sem responder a essa pergunta, pode-se confessar a fé, mas de cabeça vazia.
Os Evangelhos não são um tratado sobre o riso, como o de Henri Bergson. São algo de outra ordem, são fruto de um Deus que ri de alegria e o NT está escrito para que a alegria de Deus seja a nossa alegria [2].
3. As surpresas deste Domingo não ficam por aqui. Antes de qualquer outra consideração, reparemos no texto de S. Lucas [3].
Jesus entrou numa aldeia. E uma mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa. Tinha ela uma irmã, chamada Maria, a qual, sentada aos pés do Senhor, escutava a sua palavra. Marta, porém, andava atarefada com muitos serviços e aproximando-se, disse: Senhor, não te preocupa que a minha irmã me deixe sozinha a servir? Diz-lhe, pois, que me venha ajudar. O Senhor respondeu-lhe: Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas; mas uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada.
Esta encenação é irritante, injusta e, para mais, é o próprio Jesus que sai em defesa de Maria. É acolhido em casa das duas irmãs. Maria só está interessada em escutar o hóspede, não se importa com a preparação do jantar. A Marta acha isso incrível e protesta. Jesus desvaloriza os trabalhos de Marta e louva a despreocupação de Maria.
Não me admira que este texto tenha sido usado para mostrar a superioridade das Ordens e das Congregações Religiosas dedicadas à vida contemplativa em relação às dedicadas à vida activa.
Não vou entrar nesse debate. José Mattoso [4] fez esse trabalho de forma exemplar, tanto sob o ponto de vista histórico, como cristão empenhado em compreender a natureza desse problema.
No meu entender, essa teologia da Vida Religiosa escondia, de algum modo, o que deveria revelar: o contraste radical entre o antigo e o novo estatuto da mulher introduzido por Jesus.
Marta representa o estatuto subordinado da mulher que não tinha acesso ao conhecimento da Palavra de Deus. Era essa a situação com que Jesus estava sempre confrontado e que não aceita. Da Bíblia, interpretada como palavra de Deus, a mulher só devia saber o que o marido entendesse. Era reserva dos homens e, por isso, até no templo tinham um lugar à parte.
A figura de Maria representa a Mulher do NT, resultado da revolução operada por Jesus e que Paulo destacou de forma enérgica e radical: todos vós sois filhos de Deus em Cristo Jesus, mediante a fé; pois todos os que fostes baptizados em Cristo, revestistes-vos de Cristo mediante a fé. Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus [5].
Por causa desse esquecimento, continuamos às voltas com as questões ridículas em torno do papel das mulheres na Igreja. Será o papel dos homens na Igreja o de mostrar a inferioridade das mulheres? A essa falsa problemática só apetece responder com o riso. No entanto, passo a passo, o Papa Francisco vai mostrando que essa situação não é invencível. Acaba de nomear três mulheres para integrar o Dicastério para os Bispos.
É exagero dizer que este é um acontecimento histórico. É quase nada para o que urge decidir.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. Gn 18, 1-1
[2] Jo 15, 11; 1Jo 1, 1-4
[3] Lc 10, 38-42
[4] Levantar o Céu. Os labirintos da Sabedoria, Temas e Debates, 2012 (4 edições no mesmo ano), pp. 229-256
[5] Gal 3, 27-28