Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO
A invasão da Ucrânia recebeu o apoio do Patriarca de Moscovo, Cirilo I. Do ponto de vista cristão é inevitável a pergunta: qual é o espírito que move este Patriarca?
1. Continuamos a viver, em muitas partes do mundo, tempos de confusão política e religiosa. A guerra voltou a esta Europa cansada de paz e sem memória das vítimas de um passado não muito longínquo.
A invasão da Ucrânia, por mandato de Vladimir Putin, actual presidente da Rússia, recebeu o apoio do Patriarca de Moscovo, Cirilo I. Do ponto de vista cristão é inevitável a pergunta: qual é o espírito que move este Patriarca? O Espírito de Cristo – Espírito do Pentecostes – é um apelo universal à paz e à partilha dos bens da natureza destinados a todos os seres humanos. Não me pertence julgar as suas convicções e intenções, mas também não posso fechar os olhos e os ouvidos, embora não tenha de acreditar só no que é apresentado pelos meios de comunicação e das redes sociais.
Pode haver muitas formas de reagir às posições do Patriarca de Moscovo. A do Papa Francisco parece-me, do ponto de vista cristão, exemplar. Mandou-lhe uma mensagem nestes termos: “A festa de S. Cirilo, o grande apóstolo dos eslavos, oferece-me a oportunidade de lhe enviar as minhas saudações e assegurar a minha oração por Sua Santidade e pela Igreja confiada ao seu cuidado pastoral. Nestes dias, rezo ao Pai celestial para que o Espírito Santo nos renove e nos fortaleça no ministério do Evangelho, especialmente nos nossos esforços para proteger o valor e a dignidade de cada vida humana”. Termina a sua saudação, pedindo a Deus “o dom da sabedoria": “Para que sejamos sempre humildes trabalhadores na vinha do Senhor.”
Tenho, por outro lado, de testemunhar, como muitas pessoas do mundo inteiro, que a eleição de Mario Jorge Bergoglio para bispo de Roma e Papa da Igreja Católica, em processo de abertura a todos os mundos, foi um autêntico Pentecostes, dom do Espírito de Cristo. Toda a gente pode saber de que espírito é o Papa Francisco.
A pergunta do título desta crónica – e talvez esteja a repetir-me – é essencial. Foi título de um famoso livro do Padre Joaquim Alves Correia (1886-1951) [1], que morreu no exílio por não aceitar a ditadura e o espírito da ditadura do católico António Oliveira Salazar (1889-1970), nem a estreiteza do catolicismo português. O seu primeiro livro chamava-se, precisamente, A Largueza do Reino de Deus. Quem não gostava dele dizia, em tom de troça: “Esse é o padre das larguezas!”
O final do Evangelho de Mateus, que é um grande começo, põe na boca de Jesus a verdadeira missão da Igreja: “Ide e fazei discípulos e discípulas de todos os povos, baptizando em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos” [2]. Não se pode desligar a Igreja deste mandato, fonte permanente do seu caminho: fazer discípulas e discípulos da paz universal.
O Pentecostes é, precisamente, o dom universal do Espírito do Ressuscitado, Espírito de permanente insurreição não-violenta dos oprimidos. Por isso, S. Paulo tenta mostrar, de forma muito engenhosa, que, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé, é vã a nossa esperança [3].
É interessante observar que, segundo os quatro Evangelhos, as narrativas da Ressurreição de Cristo têm por base o testemunho de várias mulheres. Os Actos dos Apóstolos fazem uma inflexão: contam que estes, depois da Ascensão, eram todos unânimes assíduos à oração, com algumas mulheres, entre as quais Maria, a mãe de Jesus, e os irmãos dele. Aí, ao contrário das narrativas da Ressurreição, são nomeados primeiro os apóstolos e, só a seguir, as mulheres. Não vou discutir estas divergências de perspectiva, mas não posso esconder a alegria de ter encontrado um ícone copta do Pentecostes que coloca as mulheres antes dos apóstolos. Não faz mais do que seguir a ordem das narrativas evangélicas.
2. Hoje, Domingo de Pentecostes, de que já falei na crónica anterior, desejo reproduzir uma bela declaração que uns atribuem ao Patriarca Atenágoras (1886-1972) e outros, ao Patriarca Inácio Hazim, IV de Antioquia (1920-2012), observador no Concílio Vaticano II. É esta a declaração: Sem o Espírito Santo, Deus está longe; Cristo permanece no passado; o Evangelho é letra morta; a Igreja, uma simples organização; a autoridade, despotismo; a missão, propaganda; o culto uma evocação; e a vida cristã, uma moral de escravos. Mas no Espírito Santo o cosmos fica elevado e geme na gestação do Reino; o ser humano luta contra a carne; Cristo ressuscitado está presente, o Evangelho é poder de vida, a Igreja é ícone da comunhão trinitária; a autoridade, um serviço libertador; a missão, um novo Pentecostes; a liturgia é memorial e antecipação; e toda a vida cristã fica deificada.
Yves Congar, O.P. (1904-1995), no último volume da sua trilogia sobre o Espírito Santo [4], resumiu, assim, o seu tema: não há cristologia sem pneumatologia nem pneumatologia sem cristologia. De facto, uma Igreja sem o Espírito de Cristo é uma simples organização, exposta a todas as apetências e lutas pelo poder de mandar. Seria uma igreja mundana que não entende nem o ser humano nem o mundo nem Deus.
A pergunta, de que espírito somos, já vem dos Actos dos Apóstolos: Paulo, depois de atravessar as regiões do interior, chegou a Éfeso. Encontrou alguns discípulos e perguntou-lhes: “Recebestes o Espírito Santo, quando abraçastes a fé?” Responderam: “Mas nós nem sequer ouvimos dizer que existe o Espírito Santo.” Então, Paulo perguntou: “Que baptismo recebestes?” Responderam: “O baptismo de João.” João – disse Paulo – “ministrou apenas um baptismo de penitência e dizia ao povo que acreditasse naquele que ia chegar depois dele, isto é, Jesus”. Tendo ouvido isto, receberam o baptismo em nome do Senhor Jesus. Quando Paulo, lhes impôs as mãos, o Espírito Santo desceu sobre eles e começaram a falar línguas e a profetizar.
3. Receio que, ao ler estas e outras narrativas do Novo Testamento, se fique com a impressão de automatismos rituais, quando de facto, implicam um caminho de conversão permanente. As celebrações dos sacramentos, a começar pelo Baptismo, exigem a construção de uma comunidade que vai apoiando o seu desenvolvimento ao longo de toda a vida. Perguntar a uma pessoa se foi ou não baptizada pouco adianta. A grande pergunta é se a apropriação do sacramento alterou e continua a alterar a nossa vida.
Quando ao longo da Eucaristia – não existe sem a acção do Espírito Santo – confessamos várias vezes que somos pecadores, não é masoquismo, não é autoflagelação, é uma declaração pública de que somos frágeis, falhamos muitas vezes, estamos a caminho e precisamos da ajuda de todos. Não nos damos por vencidos, porque podemos sempre abrirmo-nos à graça do Espírito de Cristo e à ajuda dos irmãos.
Se, no calendário litúrgico, existe o Dia de Pentecostes, não significa que estamos a comemorar um acontecimento de há dois mil anos. Só tem sentido se for para não esquecermos de que espírito somos: Espírito de Cristo, princípio vital de quem O acolhe e O testemunha no dia-a-dia e não, apenas, nos actos religiosos.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Padre J. Alves Correia, De que Espírito Somos, 1933
[2] Mt 28, 16-20
[3] 1Cor 15
[4] Yves Congar, La Parole et le Souffle, Desclée, 1984