no PÚBLICO
Há muito que o Papa Francisco alertou as igrejas, as religiões e a sociedade para uma realidade em que não se queria pensar: estamos a viver a III Guerra Mundial aos bocados. A guerra, pela invasão da Ucrânia, veio ter com um Ocidente distraído
1. Vivemos, como humanos, na e através das experiências da linguagem ou, melhor, das linguagens. A significação das nossas concepções, afirmações e negações depende do seu uso. O uso profano e religioso não são da mesma ordem, embora se possam servir das mesmas palavras. A diferença da linguagem do sagrado nota-se, sobretudo, no culto [1]. Quando, no Credo, dizemos que Jesus Cristo desceu dos céus, foi por nós crucificado sob Pôncio Pilatos, ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras, e subiu aos céus onde está sentado à direita do Pai, só tem sentido no âmbito das confissões de fé. Fora desse contexto, presta-se ao ridículo. Por outro lado, essas expressões nasceram num contexto cultural que já está muito longe das nossas experiências actuais de relação entre o sagrado e o profano.
A interpretação da linguagem simbólica não é para a superar, mas para a entender e há metáforas vivas e metáforas mortas. Se as religiões e o diálogo inter-religioso quiserem ser compreendidos, para além do seu âmbito, têm de mostrar o seu sentido para dimensões da existência humana que transcendem as verificações científicas.
O saudoso P. João Resina, professor de Física durante 30 anos e um cristão fervoroso, era também discípulo de Kant, para o qual há três questões fundamentais: o que posso saber, o que devo fazer, o que me é lícito esperar. À primeira responde a ciência, à segunda, a ética e à terceira, a religião. Gostava de sublinhar: uma coisa é tentar compreender o universo. Para isso há a física e a biologia. Se quero saber se houve ou não big bang, se a vida evoluiu ou não, não pergunto à Bíblia, não pergunto à Igreja, que não tem competências nessa matéria. Era alérgico à confusão entre a linguagem da ciência e a da fé. Para Kant, a pergunta que resume todas as outras é esta: o que é o ser humano? A esta responde a antropologia.
Não é por acaso que o Documento sobre a Fraternidade Humana, assinado pelo Papa Francisco e o Grão Imame Ahmad Al-Tayyeb, em Abu Dhabi, a 4 de Fevereiro de 2019, será adoptado pela República de Timor-Leste, como um documento nacional, a ser implementado nas instituições educacionais e culturais da nação do sudeste asiático, como deseja o seu actual Presidente, Ramos-Horta.
2. Segundo os Actos dos Apóstolos que estamos a ler na liturgia, o primeiro dia da semana é sempre o Domingo, que não é um dia depois do Sábado. É um começo novo. A encenação que Lucas faz do início da Igreja cristã supõe um período de múltiplas manifestações do Ressuscitado, a discípulas e a discípulos, e também o tempo que nós vivemos sem a experiência misteriosa desses encontros.
Lucas quer marcar que a Igreja nascente levou tempo a despedir-se de uma restauração política de Israel. Nasce, então, a narrativa da Ascensão, isto é, o modo que encontraram para figurar a renúncia a essa nostálgica tentação. A melhor maneira era de mostrar que os discípulos não podiam continuar a manipular frutos da imaginação do poder. Cristo era absorvido pelo irrepresentável mistério de Deus, pois, o céu não é um lugar, mas nós vivemos sempre em categorias de tempo e espaço. Ao dizer que Cristo subiu aos céus, significa que Cristo entrou na dimensão do divino, sem tempo e sem lugar. É por isso que surgem figuras da divindade a dizer: a vossa missão não se deve perder no passado, mas agir no presente aberto ao futuro.
Este Papa não tem dias nem semanas suficientes para colocar a Igreja actual em movimento: a intensificação e alargamento do diálogo inter-religioso, para que as religiões sejam caminhos de paz e não de guerra; para que a Laudato Sí’ não seja arquivada, mas concretizada, dedicou-lhe, de novo, uma semana de estudo e conscientização que termina hoje, não para ser encerrada, mas relançada; o dia 31 deste mês será dedicado aos meios de comunicação social, estimulando os jornalistas a escutar os acontecimentos com o ouvido do coração.
Além disso, a preparação do Sínodo 2023 está em andamento para que, de novo, se torne o próprio estilo de viver em Igreja; a erradicação do abuso sexual nas comunidades cristãs; a preparação do Domingo, 24 de Julho, 2022 – 2.º Dia Mundial dos Avós e dos Idosos – já começou com o tema Dão fruto mesmo na velhice e pretende destacar a que ponto os avós e idosos são um valor e um dom, tanto para a sociedade, como para a comunidade eclesial. Este tema, segundo uma nota do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, é também um convite a reconsiderar e valorizar os avós e os idosos, frequentemente deixados às margens das famílias, das comunidades civis e eclesiais.
A experiência de vida e de fé deles pode contribuir, com efeito, para construir sociedades conscientes das suas próprias raízes e capazes de sonhar um futuro mais solidário, fundamental para uma concepção inter-geracional da aventura humana [2].
3. Há muito que o Papa Francisco alertou as igrejas, as religiões e a sociedade para uma realidade em que não se queria pensar: estamos a viver a III Guerra Mundial aos bocados. A guerra, pela invasão da Ucrânia, veio ter com um Ocidente distraído. Agora, tornou-se o assunto das televisões, das rádios, dos jornais, das redes sociais. Francisco ofereceu-se para ser mediador de paz entre a Rússia e a Ucrânia. Está a enviar continuamente delegados ao povo sofredor. As consequências desta guerra absurda – como são todas as guerras – já se fazem sentir a nível mundial e os negócios das armas estão a enriquecer os muito ricos.
Por falar em ricos, Victor Ferreira, no PÚBLICO (25.05.2022), fez eco ao Relatório da Oxfam, Lucrando com a dor, dizendo com ironia que os multimilionários que estão no Fórum Económico Mundial de Davos, na Suíça, têm muito que celebrar. “Durante a pandemia de covid-19, a sua fortuna atingiu picos estonteantes e sem precedentes. A pandemia – um tempo cheio de dor para a maioria da humanidade – tem sido um dos melhores momentos na história dos multimilionários.”
A referida confederação internacional de luta contra a pobreza “afirma que nos últimos dois anos surgiram 573 novos multimilionários, ou seja, um novo milionário a cada 30 horas, ao mesmo tempo que mais cerca de 263 milhões de pessoas correm risco de pobreza extrema em 2022 – ou seja, um milhão de pobres a cada 33 horas –, devido às consequências da pandemia e por causa do custo crescente da alimentação”.
“A Oxfam quer, acima de tudo, destacar que o crescimento rápido dessas fortunas hoje em dia e a crise no custo de vida enfrentada por milhares de milhões de outras pessoas são duas faces do mesmo fenómeno. Isto não é apenas algo que está a acontecer, enquanto eles mandam; isto está a concretizar-se de forma deliberada com o seu apoio.”
Os relatórios desta organização pedem, em Davos, medidas contra “uma desigualdade que mata” [3].
Quem poderá fechar os olhos, os ouvidos e o coração perante esta vergonha?
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. Leszek Kolakowski, Si Dios no existe…, Tecnos, 1995; Juan Martín Velasco, Metamorfosis de lo sagrado y futuro del cristianismo, Sal Terrae, 1999
[2] Cf. www.vatican.va
[3] Para muitos outros dados, ver na Internet os Relatórios da Oxfam