segunda-feira, 18 de abril de 2022

Páscoa de Cristo, nossa Páscoa

Crónica de Bento Domingues 
no PÚBLICO

A perspicácia do Papa Francisco já tinha repetido várias vezes que estávamos à beira de uma guerra mundial aos bocados. Como acontece frequentemente, as vozes mais lúcidas são as mais esquecidas

1. Porque será que os católicos e, de forma muito mais ampla, os cristãos celebram a Páscoa todos os anos da mesma maneira, com a repetição dos mesmos textos e dos mesmos gestos? No geral, os liturgistas não se revelam muito criativos. Tenho saudades das celebrações do Frei José Augusto Mourão (1947-2011), que sabia combinar as tradições litúrgicas com ousadas inovações.
No Cristianismo não contam, sobretudo, as mudanças rituais. Estas devem estar ao serviço da mudança de vida. Só esta pode provocar expressões sempre novas.
No ano passado, lembrei alguns contributos teológicos acessíveis e desafiantes [1]. O tempo não pára nem as suas surpresas. Quem poderia adivinhar que estaríamos, depois de uma época terrível de pandemia, numa guerra absurda e abençoada por algumas lideranças designadas como cristãs, embora não possamos desconhecer todos os movimentos, cristãos ou não, que não podem pactuar com o abandono das vítimas da estupidez [2]! De facto, a perspicácia do Papa Francisco já tinha repetido várias vezes que estávamos à beira de uma guerra mundial aos bocados. Como acontece frequentemente, as vozes mais lúcidas são as mais esquecidas.
Os produtores de armamento, cada vez mais sofisticado, precisam desse comércio para fazerem fortunas à custa do sofrimento e da morte dos outros. Heidegger dizia que o ser humano é para a morte. Se isso fosse verdade, teríamos de agradecer a todas as máquinas de guerra que facilitam esse objectivo. Prefiro o que nos disse a filósofa judia Hanna Arendt: os seres humanos, embora tenham de morrer, não nasceram para morrer, mas para começar.
Por outro lado, os bons programas de governo insistem na qualidade do ministério da saúde, para que haja adequados serviços que possam cuidar dignamente de todas as pessoas, sobretudo das mais pobres.
Durante muito tempo, repetia-se que, fora da Igreja, não há salvação. E. Schillebeecckx alterou esse adágio: fora do mundo não há salvação [3]. Quer dizer que não nos podemos resignar ao mundo que temos. Isto não é mundo que se apresente. Em todas as circunstâncias, a esperança cristã confessa que a morte não é a última palavra. Quem morre é recebido pelo amor infinito que é o próprio Deus.

2. É neste mundo que precisamos descobrir o sentido da vida, dos acontecimentos, de tudo o que nos rodeia. Com a Laudato Sí’ e a sua concepção de uma ecologia integral, cristãos e não cristãos são chamados a descobrir que é este mundo que devemos salvar, se nos quisermos salvar a todos. O Papa Francisco, ao assumir tudo o que se tem feito para salvar a Casa Comum, procurou envolver todas as pessoas de boa vontade.
Com efeito, a ecologia diz respeito, não apenas a um oásis para os ricos e poderosos, mas à gestão de um ambiente mais amplo, no qual vivem os indivíduos, a comunidade local e o conjunto de todas as pessoas, de todas as gerações. Ora, a casa em questão não é só a natureza que nos rodeia, com todos os seus recursos de ar, água, luz, animais e plantas; ela também inclui o ambiente humano, isto é, as pessoas com quem vivemos e com quem nos encontramos ligados por vínculos de parentesco, de amizade, de trabalho, de cidadania a todos os níveis.
Trata-se de uma ecologia que deve ser realizada com as pessoas e pelas pessoas, que não pode, de modo algum, limitar-se a chorar pela luta entre as espécies vivas, particularmente entre aquela espécie de animal ávido e destruidor que é o ser humano e as demais criaturas, que muitos consideram como guardiões inconscientes dos equilíbrios naturais. A ecologia assim entendida adquire novos fundamentos, novas motivações, prevê tarefas nas quais indivíduos e sociedades, no respeito pelos direitos universais, são chamadas a fortalecer-se.
Quando S. Pedro pede aos cristãos para estarem sempre prontos a dar razão da sua esperança [4], esta não se refere, apenas, ao mundo depois da morte, mas à tarefa de começar, já, os trabalhos para um novo céu e uma nova terra, como diz o Apocalipse.
O que está a acontecer não é a construção de novo céu e nova terra, mas a destruição de povos inteiros e do seu mundo.

3. Não devemos desligar a participação na Eucaristia da participação na nossa transformação e na transformação do nosso mundo. Na anáfora de São Basílio (329-379) ninguém é esquecido:
“Lembrai-vos, Senhor, do povo que está ao vosso redor e daqueles que, por um justo motivo, foram omitidos, e tende misericórdia delas e de nós, segundo a abundância da vossa misericórdia: enchei as suas despensas de todo bem; conservai as suas uniões conjugais na paz e na concórdia; criai as crianças, educai os jovens, fortalecei os idosos; consolai os fracos de ânimo, reuni os dispersos, reconduzi os errantes e reuni-os à vossa santa, católica e apostólica Igreja.
Libertai aqueles que são afligidos por espíritos imundos; navegai com os navegantes; caminhai junto com aqueles que caminham; cuidai das viúvas, protegei os órfãos, libertai os prisioneiros, curai os doentes; lembrai-vos daqueles que estão nos tribunais, nas minas, no exílio, em dura escravidão e em todas as tribulações e necessidades e na perturbação; lembrai-vos também, ó Deus, de todos aqueles que precisam da vossa grande compaixão, daqueles que nos amam e daqueles que nos odeiam, daqueles que pediram a nós, indignos, que rezássemos por eles.
Lembrai-vos também de todo o vosso povo, Senhor, nosso Deus, e derramai sobre todos a abundância da vossa misericórdia, concedendo a todos o cumprimento dos pedidos de salvação; e daqueles de quem não fizemos memória por ignorância ou por esquecimento ou pela abundância de nomes, lembrai-vos vós mesmo, ó Deus, que de cada um conheceis a idade e o nome, que conheceis a cada um desde o ventre de sua mãe.
De facto, Senhor, sois o cuidado dos que são negligenciados, a esperança dos desesperados, o salvador dos que estão agitados, o porto dos navegadores, o médico dos doentes; sede tudo para todos eles, vós que conheceis cada um e o seu pedido, a sua casa e a sua necessidade.
Libertai, Senhor, este rebanho e toda a cidade e região, da fome, da peste, do terremoto, do naufrágio, do fogo, da espada e da invasão estrangeira e da guerra civil...” [5].
S. João, na sua primeira carta, ainda foi mais radical, abrangente e desafiante: sabemos que passamos da morte para a vida porque amamos os irmãos [6]. Esta é a nossa Páscoa de todos os dias!

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Cf. entre outros, Andrés Torres Queiruga, Repensar la resurrección, Trotta, 2005; José Antonio Pagola, Jesus. Uma abordagem histórica, Gráfica de Coimbra, 2008; A. Cunha de Oliveira, A ressurreição dos mortos, Instituto Açoriano da Cultura, 2016.
[2] Cf. Anselmo Borges, Francisco vai a Kiev?, DN, 09.04.2022
[3] Edward Schillebeeckx, L’histoire des hommes, récit de Dieu, Cerf 1992
[4] 1Pd 3, 13-17
[5] Revista IHU on-line, 11 Outubro 2019
[6] 1Jo 3, 14

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