no PÚBLICO
O que nos falta ver, escutar e anunciar, para que os desejos e atitudes do Papa Francisco se tornem desejos e atitudes de toda a Igreja?
1. Já publiquei, nesta coluna, várias crónicas sobre a controvérsia do papel das mulheres na Igreja [1]. Sentem-se discriminadas, pois há ministérios que lhes estão vedados, apesar da posição categórica de S. Paulo: Todos vós sois filhos de Deus em Cristo Jesus, mediante a fé; pois todos os que fostes baptizados em Cristo, revestistes-vos de Cristo mediante a fé. Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus [2]. Esta afirmação diz que não há dois baptismos diferentes: um para homens e outro para mulheres.
O que sempre me intriga, sobretudo na Páscoa, é verificar que, em todas as narrativas do Novo Testamento sobre a Ressurreição, as mulheres é que aparecem em primeiro lugar e são elas as escolhidas, por Jesus, para vencerem a incredulidade dos discípulos. São elas as encarregadas de evangelizar os apóstolos. O que continua a intrigar-me são os argumentos pseudo-teológicos para as impedir de serem chamadas aos ministérios ordenados que se tornaram exclusivos dos homens. Parece-me que já é tempo de questionar a negacionista Carta Apostólica Ordinatio Sacerdotalis, de João Paulo II (1994): “para que seja excluída qualquer dúvida em assunto da máxima importância, que pertence à própria constituição divina da Igreja, em virtude do meu ministério de confirmar os irmãos (cf. Lc 22, 32), declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja.”
Compreendo que o Papa Francisco não se sinta muito à vontade para enfrentar esse documento que, não sendo nenhum dogma, decreta que é uma sentença definitiva, como se fosse possível, a partir de um determinado contexto histórico e doutrinal, emitir uma decisão com valor definitivo.
O que o Papa Francisco tem feito é preparar o terreno para que se torne evidente que uma decisão temporal não pode travar a vida da Igreja para sempre. Interpreto, nesse sentido, as nomeações de mulheres para o governo da Igreja, que tem feito em muitas áreas.
Na Páscoa deste ano, sempre em estilo coloquial, fez declarações e tomou posições fundamentais sobre vários assuntos, mas nomeadamente sobre as mulheres: numa longa entrevista a Lorena Bianchetti, na Sexta-Feira Santa; na sua extraordinária homilia na Vigília Pascal e na sua participação, no programa produzido pelo Dicastério para a Comunicação em colaboração com a Rai Cultura, transmitido na noite de Páscoa na Rai Uno, sobre os “Rostos dos Evangelhos” [3].
Como se compreende, não posso reproduzir, aqui, as declarações em todos esses momentos nem comentá-las a todas. Gostaria muito se estas referências servirem para os leitores não passarem ao lado do que mais importa. Não são ordens, não são decretos, são experiências próprias e dos seus encontros com quem está só e esquecido.
2. No decorrer da referida entrevista, em relação à guerra na Ucrânia, Lorena Bianchetti perguntou-lhe: qual o papel activo das mulheres, na mesa de negociações, para construírem concretamente a paz? O Papa responde-lhe com um ditado: As mulheres são capazes de dar vida até a um morto. As mulheres estão na encruzilhada das maiores fatalidades, elas estão lá, são fortes. Por isso o que diz – dar às mulheres um papel em momentos difíceis, em momentos de tragédia – é tão importante, é muito importante. Elas sabem o que é vida, o que se prepara para a vida e o que é a morte, conhecem-na bem. Falam essa linguagem.
Alargou, no entanto, o âmbito da resposta: A exploração das mulheres é o nosso pão quotidiano. A violência contra as mulheres é o nosso pão de cada dia. Mulheres que sofrem golpes, que sofrem violência por parte dos seus companheiros e carregam isto em silêncio ou afastam-se sem dizer porquê. Nós, homens, teremos sempre razão: somos os perfeitos. As mulheres estão condenadas ao silêncio pela sociedade. Não, mas esta é louca, é uma pecadora. Era o que costumavam dizer sobre Madalena: Olha o que ela fez, é uma pecadora! E tu não és um pecador? Não erras?
As mulheres são a reserva da humanidade, posso dizer isto: estou convencido disto. As mulheres são a força. Ali, aos pés da cruz, os discípulos fugiram, as mulheres não, as que o seguiram ao longo da vida. Jesus, a caminho do Calvário, pára em frente de um grupo de mulheres que choravam. Elas têm a capacidade de chorar, nós, homens, somos mais brutos. Ele pára e diz: Chorai pelos vossos filhos, porque farão muitas coisas contra eles.
Na homilia da Vigília Pascal, não esqueceu a guerra: Muitos escritores evocavam assim a beleza das noites iluminadas pelas estrelas. Ao contrário, as noites de guerra são atravessadas por rastos luminosos de morte. Nesta noite, irmãos e irmãs, deixemo-nos guiar pelas mulheres do Evangelho, para descobrir com elas a aurora da luz de Deus que brilha nas trevas do mundo.
Quando já a noite ia clareando e irrompiam, silenciosas, as primeiras luzes da aurora, aquelas mulheres foram ao sepulcro para ungir o corpo de Jesus. Lá vivem uma experiência que as inquietou: primeiro, descobrem que o sepulcro está vazio; depois, vêem duas figuras em trajes resplandecentes que lhes dizem que Jesus ressuscitou; imediatamente, correm a anunciá-lo aos outros discípulos (cf. Lc 24, 1-10). Elas vêem, escutam, anunciam. Com estas três acções, entremos também nós na Páscoa do Senhor.
A homilia está construída em torno destes três verbos de acção. Ao mostrar o que as mulheres viram, escutaram e anunciaram, fez delas as grandes pregadoras dessa noite. Não são os padres a falar, são elas.
3. No programa da Rai, transmitido na noite de Páscoa, o Papa Francisco, depois de apresentar vários rostos do Novo Testamento que o impressionaram, falou da importância das mulheres no Evangelho. Este começa com uma muito jovem, em Nazaré: é uma mulher, Maria, que abre a porta e diz sim, eu aceito Deus feito homem. É também uma mulher, tida como pecadora, que foi escolhida para dar a outra grande notícia: Ele ressuscitou.
É ela. É curioso: os apóstolos não acreditam nas mulheres. Sim, sim, mas vamos ao túmulo para ver como estão as coisas. Ou os de Emaús que dizem esta frase: Sim, algumas mulheres vieram dizer que não havia corpo, que ele havia ressuscitado, que havia anjos... Falta o pensamento final desses dois: Vão acreditar nas mulheres?!, foi isso que eles sentiram, não é? Sim, a fobia em relação às mulheres, que muitas vezes temos, é curiosa: parece que eram seres humanos de segunda classe, de segunda categoria. Mas o Senhor revelou-se às mulheres e através das mulheres.
O que nos falta ver, escutar e anunciar, para que os desejos e atitudes do Papa Francisco se tornem desejos e atitudes de toda a Igreja?
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Entre elas, destaco: Frei Bento Domingues, O.P., As trapalhadas das mulheres na Igreja I, Público, 14.01.2018; As trapalhadas das mulheres na Igreja II, Público, 21.01.2018
[2] Gal 3, 26-28
[3] Para ler e meditar, todos os textos evocados podem ser encontrados em www.vatican.va/content/vatican/pt.html