segunda-feira, 7 de março de 2022

GAFANHA: Devoção pelas Almas do Purgatório

Tópicos para uma palestra proferida 
em 28 de Março de 2009

Etnográfico da Gafanha da Nazaré na Igreja Matriz

Perde-se no tempo a devoção pelas Almas do Purgatório. Antes do cristianismo, já os filhos de Abraão rezavam pelos mortos, na esperança de que Deus os conduzisse e aceitasse no paraíso. Depois, com a Boa Nova de Jesus Cristo, intensificou-se esta devoção, sendo certo que ainda hoje se mantém, talvez não tanto como na nossa meninice. A devoção do Povo de Deus, bem alimentada pelas prédicas e catequeses dos sacerdotes, levou ao surgimento de Irmandades, que tinham por missão estimular o culto, participar nos funerais e encomendar a celebração de missas pelas almas, entre outras obrigações.
Mas o culto dos mortos, como é sabido, não existe só no catolicismo. (Há Igrejas cristãs que não aceitam o Purgatório, razão de ser das orações pelos almas dos mortos). Noutras civilizações e culturas também houve e há a crença na vida do além, a que estão ligados muitos actos cultuais.

Permitam-me que lembre hoje as “Alminhas”, junto às estradas ou nas encruzilhadas dos caminhos. Pequenos nichos ou capelinhas que nos recordam os que morreram e que são um convite a que rezemos por eles.

Aqui na Gafanha da Nazaré também havia “Alminhas”, com um postigo para deixarmos as nossas ofertas. O dinheiro era recolhido pelo proprietário, para mandar celebrar missas. Havia dentro um painel que nos recordava o sofrimento dos que estavam no Purgatório. Uma lamparina e flores completavam o quadro.

As Alminhas da Cale da Vila e da Chave, as que conhecemos mais de perto, eram antigas. A da Cale da Vila foi construída em 1864 e a Chave em 1910.
Recordo, com saudade, os tempos em que, na quaresma, as devoções se intensificavam. O sofrimento de Cristo, do tamanho dos pecados do mundo, era sentido pelos fiéis, com especial envolvimento de toda a gente crente. Crente e menos crente, porque de alguns destes ouvi que só participavam nas missas que se celebravam pelas almas, quer no dia dos funerais, quer do sétimo dia, quer nos dias dos fiéis, 2 de Novembro, em que havia três missas seguidas, com as igrejas sempre cheias.

Na quaresma, nas Gafanhas e noutras comunidades religiosas, as devoções pelas almas proporcionavam vivências muito fervorosas, com o povo a reunir-se, para, em grupo, visitar todas as casas, não só para rezar e cantar, mas também para recolher esmolas, para mandar rezar missas. Havia a tradição de “ouvir” missas pelos fiéis defuntos, tarefa que competia a pessoas idosas e disponíveis, mas também pobres, que recebiam esmolas por isso. Substituíam as que trabalhavam ou muito ocupadas.

Sem luz eléctrica que iluminasse caminhos, noites escuras se a Lua estivesse escondida, lá íamos, respeitosamente, rezando e cantando, atrás da claridade frouxa de duas lanternas, que ladeavam o Painel das Almas. O grupo ia engrossando, ou diminuindo, com gente que entrava e saía, porque nem todos podiam caminhar muito, afastando-se demasiado das suas habitações.

Mas ouçamos a descrição que o Padre João Vieira Rezende faz destas devoções, já que, na Gafanha da Encarnação, de que foi pároco, entre 10 de Novembro de 1928 e 1948, as vivenciou e das quais deixou expressivos registos, na sua “Monografia da Gafanha”, conforme se lê na segunda edição que possuo, com data de 1944.

“... Às 9 horas da noite tocava o búzio a lembrar aos fiéis as almas dos seus defuntos. Mais tarde, era o badalar plangente do sino que recordava a devoção pelos defuntos... Foi um século de oração quotidiana em favor dos defuntos e que as leis draconianas de 1910 sufocaram com mordaça inclemente.

“Para os habitantes do lugar à lareira, para os moliceiros e pescadores das aldeias, de Ílhavo, Vagos e Murtosa, que a essa hora mourejavam na faina da ria, e para as almas retiradas no Purgatório, emudecera aquele despertador salutar que a todos levava consolações suavíssimas, restando agora somente a emoção saudosa de tempos que não voltam!

(Nas famílias, à noite, depois da reza do terço, antes ou depois da ceia, era interminável o número de mortos que se recordavam e pelos quais rezávamos um Pai Nosso e uma Ave Maria, e “Dai-lhes, Senhor, o eterno descanso…)

“A par deste costume, um outro do mesmo género se manteve por mais tempo. Em certos e determinados dias da Quaresma, homens e mulheres, em grupo, que a pouco e pouco ia crescendo, percorriam o lugar quando todos se preparavam para descansar das fadigas diurnas.

“Painel de madeira à frente, ladeado de duas lanternas, lá seguia o grupo que ajoelhava a cada porta, de mãos postas, rostos piedosamente inclinados, a rezar, a pedir pelos que tinham partido daquele lar. A treva da noite quebrada pela luz baça das lanternas, a efervescência das preces, a toada fúnebre e plangente dos cânticos, tornavam solenemente lúgubre o cortejo deprecatório.

“E a pintura das figuras resignadas do painel, a sobressair da penumbra das lanternas, com toda a liturgia do coro que deambulava a sufragar a almas que esperavam libertação, tornava o cenário mais emotivo e confrangedor.

“No plano inferior da pintura do painel, Reis, Marqueses, homens e mulheres de mãos suplicantes e envoltas em línguas de chamas, a esperar amorosamente o momento da libertação, olham o Crucifixo nimbado por raios divergentes do Coração do Redentor.

“A sobrepujar no plano superior, S. Miguel, de balança e espada na mão, subjuga sob os pés o dragão alado em cujo arreganho infernal e olhar demoniacamente coruscante se adivinha a raiva de um plano frustrado. E o grupo continua a cantar sentimentalmente, comovedoramente, a elegia dos mortos, com o pensamento no mundo do além.”

O Padre Rezende ainda acrescenta que “A promiscuidade dos sexos, os abusos em actos tão santos, de noite e em tempos de depravação, não abonavam a intenção dos bons, antes aconselhavam a supressão desta tão antiga e simpática devoção. Assim se fez, e hoje [1944] apenas se tira a esmola de dia com o mesmo fim”.

Permitam-me que sublinhe que, durante a minha curta experiência e vivência desta devoção, nunca presenciei qualquer atitude menos correcta, fosse de quem fosse. Pelo contrário, na minha memória perdura a devoção que o Cantar das Almas suscitava em toda a gente que formava o grupo.

Na monografia da paróquia, “Gafanha – Nossa Senhora da Nazaré”, publicada em 1986, diz-se que a Irmandade do Senhor e Almas foi responsável pelo ressurgimento desta última devoção, que o Padre Rezende tão bem descreve:

“Lá vai o painel ladeado pelas duas lanternas, o membro da Confraria, de opa, com a cruz que todos beijavam, de joelhos, dentro de casa ou fora, depois de se estender a esteira.”

E cantavam-se estes versos que aqui vão ser cantados como uma relíquia.

Joélhemos nós in terra
Já nusêmos os premêros
Nossa companhia banha
Jesus Cristo berdadêro.

Atromantadas de dôras
De continu padecer,
Assim são nas almas santas
Nu Prugatório arder

Das almas do Prugatório
É bem que nos alembremos;
Nós havemos de morrer
Sabe Deus pâr donde iremos.

“Se não queriam que cantassem (por ter morrido alguém na família!), então rezava-se um Pai Nosso e uma Ave Maria.

“O da opa levava uma saca para dinheiro e outros levavam sacos para milho, feijão, cebolas, o que dessem. Deixávamos estes sacos em casa de lavradores de confiança e, ao outro dia, íamos lá buscá-los.
Vendíamos tudo e juntávamos o dinheiro. Mandávamos celebrar missas pelas alminhas do Purgatório.

“Era bonito e fazia-se bem.

“Agora, com a televisão...

“Tenho saudades desse tempo...

“E uma lágrima teimosa ia caindo, enquanto nós, admirando a candura destes homens (João Francisco da Rocha e Manuel Soares Sardo) de rostos bem marcados, pensávamos no que de bom vamos permitindo que desapareça, quantas vezes por comodismo e falsos respeitos humanos.”

Assim ficou escrito na monografia da paróquia de Nossa Senhora da Nazaré, de Manuel Olívio da Rocha e Fernando Martins, há 36 anos.

Fernando Martins

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