Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO de domingo
Frei Bento Domingues |
1. Ao fazer nove anos de pontificado, o Papa Francisco mostrou que os cépticos, acerca da possibilidade da reforma da Cúria, podem começar a rever a sua desconfiança.
Dizia-se que Bergoglio era muito corajoso nos discursos aos cardeais sobre a urgência da reforma – recorde-se o discurso à Cúria em Dezembro de 2016 –, mas sem consequências reais. Ele, no entanto, não apontou apenas os pecados curiais. Caracterizou, com lucidez, as diferentes atitudes perante as reformas necessárias: “Neste percurso, é normal e até salutar, encontrar dificuldades. No caso da reforma, poderiam ser apresentadas segundo diferentes tipologias de resistência: as resistências abertas, que nascem muitas vezes da boa vontade e do diálogo sincero; as resistências ocultas, que nascem dos corações assustados ou empedernidos que se alimentam das palavras vazias da hipocrisia espiritual de quem, com a boca, diz-se pronto à mudança, mas quer que tudo permaneça como antes. Existem também as resistências malévolas, que germinam em mentes tortuosas e aparecem quando o diabo inspira más intenções, muitas vezes disfarçadas sob pele de cordeiros. Este último tipo de resistência esconde-se atrás das palavras justificadoras e, em muitos casos, acusatórias, refugiando-se nas tradições, nas aparências, nas formalidades, no já conhecido, ou então, em querer reduzir tudo a um caso pessoal”.
Caracterizou e nomeou, também, o tipo de soluções que era preciso aplicar. Agora, temos algo novo e concreto: o próprio texto da reforma da Cúria, promulgado a 19 de Março, dia de S. José, apresentado a 21 deste mês e que entrará em vigor a 5 de Junho de 2022.
2. Segundo a apresentação aos jornalistas da Constituição Praedicate Evangelium (Pregai o Evangelho), que vamos seguir, a “Igreja em saída” é o eixo que estrutura a reforma da Cúria romana.
Os apresentadores da referida Constituição foram o cardeal Marcello Semeraro, Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos; D. Marco Mellino, Secretário do Conselho dos Cardeais; e Gianfranco Ghirlanda, SJ, um dos conselheiros canónicos da reforma.
O antigo axioma, a Igreja deve estar sempre em reforma, pode ser agora aplicado ao processo de reorganização da Cúria romana, não concluído com a promulgação desta Constituição, pois também da Cúria se pode dizer: Curia semper reformanda.
O documento, apresentado na Sala de Imprensa da Santa Sé, é fruto de um trabalho de quase dez anos de reflexão, consulta e avaliação do Papa junto do Conselho de Cardeais e de várias realidades eclesiais.
Durante a apresentação, Semeraro explicou como a nova Constituição não encerra apenas um caminho, mas abre novas estradas para o futuro. Isto significa que poderá haver outras novidades além daquelas já introduzidas: leigos Prefeitos, novos Dicastérios ou Dicastérios incorporados. Se forem precisas outras mudanças, o Papa poderá fazê-las. De facto, foi o que aconteceu com Paulo VI e João Paulo II, autores das duas Constituições Regimini Ecclesiae universae (1967) e Pastor Bonus (1988), agora superadas.
De facto, foi seguido o princípio de gradualidade que o Papa Francisco, no seu documento programático, Evangelii Gaudium, resumiu na expressão: “O tempo é superior ao espaço”, o que permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão por resultados imediatos. Ajuda a suportar com paciência as situações difíceis e adversas ou as mudanças de planos que o dinamismo da realidade impõe.
Outro princípio importante seguido, na elaboração do documento, é o da tradição, ou seja, da fidelidade à história e continuidade com o passado. Seria um engano, e algo fantasista, pensar numa reforma que perturbaria todo o sistema curial. Praedicate Evangelium faz reflorescer as esperanças e expectativas do Concílio Vaticano II.
Isto envia para o sótão antigos fantasmas sobre o próprio conceito de reforma, pois, havia medo em usar este termo por causa de controvérsias do passado.
Ao mesmo tempo, a nova Constituição Apostólica apresenta elementos decididamente inovadores. Um deles é o facto de que os leigos e leigas, na Cúria, podem assumir a liderança de Dicastérios ou outros organismos. Isto já aconteceu com a nomeação de um leigo, Paolo Ruffini, como Prefeito do Dicastério para a Comunicação. Não foi uma decisão improvisada pelo Papa. Pelo contrário, foi estudada especificamente com a contribuição das autoridades competentes. Essa escolha tinha sido timidamente solicitada pelo Vaticano II, que tinha formulado e promovido uma teologia do laicado.
Com esta decisão, abandona-se o termo Congregação, que remonta a Sisto V (1588). Este supunha que os titulares da presidência das Congregações eram apenas cardeais. Agora, acabou. O termo Dicastério sugere que, em princípio, de acordo com a sua própria natureza, todos os baptizados podem exercer esse ofício: clérigos, pessoas na vida consagrada, fiéis leigos.
O jesuíta Ghirlanda destacou o papel dos leigos na reforma da Cúria romana, sublinhando que a autoridade não vem do grau hierárquico, mas do poder que exerce em nome do Papa, isto é, o poder de governo na Igreja não vem do sacramento da Ordem, mas da missão canónica, seja recebido por um bispo, um presbítero, um consagrado ou um leigo.
Todos os fiéis são verdadeiramente iguais em dignidade e acção e a igualdade fundamental entre todos os baptizados é a base da sinodalidade.
Importa observar que, por um lado, na situação actual, se fosse preciso o sacramento da Ordem, as leigas e os leigos não poderiam estar à frente de um Dicastério. Por outro, isto pode significar algo muito menos interessante: evita-se, deste modo, a abordagem do ministério ordenado das mulheres.
Por outro lado, isto pode significar algo muito menos interessante: evita-se, deste modo, a abordagem do ministério ordenado das mulheres
3. Marco Mellino sublinhou que esta é uma reforma acordada com toda a Igreja. Não se trata, portanto, de uma decisão única de Bergoglio, mas do fruto de um processo de elaboração que aconteceu numa série de passos, segundo o princípio de que uma Igreja sinodal é uma Igreja que escuta.
O próprio M. Mellino reviu o trabalho da comissão dos cardeais, os rascunhos apresentados, as opiniões levantadas pelos dicastérios e episcopados de todo o mundo, assim como as nunciaturas, universidades e agências de informação.
Desde Julho de 2020, quando foi apresentado um projeto final de texto, o Papa examinou pessoalmente as emendas, levando em conta as observações, indicações e propostas recebidas e tomando as suas próprias decisões, para chegar ao texto agora promulgado.
Uma das grandes alterações é o facto de, a partir da publicação do texto definitivo, os novos nomeados, para liderarem os Dicastérios, terem mandatos de cinco anos, sendo avaliados e podendo ser reconduzidos ou afastados [1].
Esta nova Constituição Apostólica visa harmonizar melhor o actual serviço da Cúria com o caminho de evangelização que a Igreja, especialmente neste tempo, está a experimentar.
A Cúria Romana deve estar ao serviço primordial da evangelização e não da burocracia papal. A reforma «não é um fim em si mesma, mas um meio para dar um forte testemunho cristão; para fomentar uma evangelização mais eficaz; para promover um espírito ecuménico mais frutuoso; para fomentar um diálogo mais construtivo com todos».
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. Vatican News, 7Margens, Religión Digital (21.03.2022)