no PÚBLICO
A problemática do poder de dominar não é um assunto menor dos quatro Evangelhos. Era tema de debate entre os discípulos quando o mestre não estava presente: quem seria o maior quando Jesus tomasse o poder?
1. Estamos em período de eleições. Os cristãos não podem pedir aos seus escritos fundadores, ao Novo Testamento, indicações para formar partidos políticos. Jesus Cristo não deixou nenhuma receita económica, política ou religiosa para governar a sociedade. Não é desprezo pela política. Esta é uma realidade humana fundamental, bem ou mal configurada segundo os povos e as culturas, que deveria ser para conseguir o bem comum, o bem de todo o povo. Mas vamos encontrar, nesses textos, algo de radicalmente novo acerca do poder económico, político e religioso.
A questão do poder pode ser observada nas relações entre Jesus e os seus discípulos. É tal a insistência de que eles não entenderam nada do sentido da vocação a que eram chamados, que só não espanta quem está habituado a ler os textos cristãos sem os questionar.
Segundo os quatro Evangelhos, Jesus frequentou o movimento dos penitentes que recorriam a João Baptista e foi baptizado por ele no rio Jordão. Isto tem toda a verosimilhança histórica. Só havia vantagens em ocultar este facto. Os discípulos de João poderiam sempre argumentar a superioridade do seu mestre: o vosso mestre é que foi baptizado pelo nosso e não o contrário. De facto, o movimento de Jesus começou pela ruptura com o movimento de João.
Jesus, tendo sido baptizado e estando em oração, o Céu rasgou-se e o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma corpórea, como uma pomba. E do Céu veio uma voz: Tu és o meu Filho muito amado; em ti pus todo o meu amor [1]. Esta é a linguagem de um começo completamente novo. É a graça do Espírito Santo. Jesus abandona o mundo de João Baptista e parte para o deserto para interiorizar as consequências desse acontecimento inaugural.
No deserto não encontra a paz. É assaltado pelas tentações do messianismo económico, político e religioso. Jesus interpreta essas tentações como contrárias ao Reino de Deus. São tentações diabólicas, revestidas da linguagem do poder de dominação, mas não são ocasionais e não significa que estejam resolvidas de uma vez para sempre. S. Lucas tem o cuidado de dizer algo de extraordinário: Tendo acabado toda a tentação, o diabo deixou-o até o tempo oportuno [2].
Isto significa que toda a sua vida será uma vida tentada por um falso messianismo. Ele venceu-o, mas teve muitas dificuldades em convencer os próprios discípulos que escolheu. Contam os Actos dos Apóstolos algo de insólito. Mesmo depois da experiência de Jesus ressuscitado, os discípulos continuavam na mesma: Senhor, será agora que haveis de restaurar a realeza em Israel? [3] Jesus sente-se impotente perante tanto amor ao prazer de mandar e diz: enquanto não receberdes o Espírito que abalou a minha vida, continuareis na mesma. Referia-se ao Pentecostes.
2. Afinal, qual é o projecto de Jesus? O melhor é dar a palavra a S. Lucas. Conta que Jesus veio a Nazaré, onde tinha sido criado. Segundo o seu costume, entrou em dia de sábado na sinagoga e levantou-se para ler. Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e, desenrolando-o, deparou com a passagem em que está escrito: O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano da graça do Senhor.
Depois, enrolou o livro, entregou-o ao responsável e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Começou, então, a dizer-lhes: Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir. Todos davam testemunho em seu favor e admiravam-se com as palavras repletas de graça que saíam da sua boca.
Perguntemos: então, o que terá acontecido, a seguir a este espanto, para provocar um desentendimento total, entre ele e os seus conterrâneos e familiares? O texto, segundo diz a Bíblia de Jerusalém [4], reúne dois momentos diferentes, como se tivessem acontecido ao mesmo tempo. E esta reunião é importante porque diz o espanto e a decepção.
O que aconteceu foi uma autêntica revolução de que, ainda hoje, não nos damos conta. Vejamos. O texto de Isaías terminava assim: enviou-me para proclamar um ano da graça do Senhor, o dia da vingança da parte do nosso Deus [5]. Jesus atreveu-se a interromper a leitura para não ler o dia da vingança da parte do nosso Deus [6].
A Bíblia e sobretudo os Salmos respiram, por todo o lado, a vingança de Deus contra os inimigos. Ora, o que Jesus faz é assumir uma ruptura com essa teologia de Deus que mata e manda matar. Esse não é o seu Deus. O Reino de Deus que vem anunciar não tem nada a ver com um Deus violento. É mesmo a sua negação. O Deus da vingança não é cristão. O Papa Francisco não recorreu a nenhuma categoria teológica especial para recusar esse Deus. Bastou-lhe ligar, directamente, ao comportamento de Jesus que recusava um Deus vingativo.
3. Disse, no primeiro ponto, que Jesus venceu a tentação do messianismo económico, político e religioso, mas não conseguiu, apesar de todos os seus esforços, convencer os próprios discípulos que escolheu.
A problemática do poder de dominar não é um assunto menor dos quatro Evangelhos. Pelo contrário é, para todos eles, a questão fundamental que teve muitas manifestações e que, segundo S. Marcos, era mesmo essa a dificuldade em entenderem os gestos e as atitudes de Jesus. Era, por isso, o debate entre os discípulos quando o mestre não estava presente: quem seria o maior quando Jesus tomasse o poder? [7]
Jesus deu-se conta que havia conversas para as quais não era chamado e, por isso, perguntou: Que andáveis vós a conversar pelo caminho? Sentiu mesmo a necessidade de uma reunião explícita para essa questão, mas nem foi preciso. Segundo S. Mateus, é a mãe dos filhos de Zebedeu que se mostra interessada num bom lugar para os filhos. Em S. Marcos, são os próprios, Tiago e João, que foram ter com Jesus: Mestre, queremos que nos faças o que te pedimos. Disse-lhes: Que quereis que vos faça? Eles disseram: Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda. Isso provocou indignação nos outros. Todos procuravam o mesmo.
A resposta rotunda de Jesus é esta: não há lugares de poder para ninguém. Quem quiser ser o primeiro ponha-se ao serviço de todos. Inverte, assim, de forma radical, que o próprio do caminho cristão é o do serviço, o poder de servir, não o poder de dominar.
O debate actual sobre o poder na Igreja e os seus ministérios têm todos de ter a mesma base: ser cristão é prontificar-se a servir. Jesus disse-lhes: Os reis das nações imperam sobre elas e os que nelas exercem a autoridade são chamados benfeitores. Convosco, não deve ser assim; o que for maior entre vós seja como o menor, e aquele que mandar, como aquele que serve [8].
Voltaremos a esta questão fundamental para a vida da Igreja.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Lc 3, 21-22
[2] Lc 4, 1-13
[3] Act 1, 6-9
[4] Cf. Lc 4, nota v que antecede o v.16. Importa ler o texto na integra (Lc 4, 16-30)
[5] Is 61, 1-2
[6] Lc 4, 16-30
[7] Mc 10, 35-45; Mt 20, 20-28; Lc 22, 24-27; Jo 13, 1-17
[8] Lc 22, 24-26