no Diário de Notícias
Os fenomenólogos da religião fazem notar que, mesmo nas sociedades secularizadas, encontramos ainda algo dos mitos cosmogónicos, nomeadamente nos festejos da passagem de ano: folguedos e licenças, uma certa tonalidade orgiástica, alguma "confusão" social na noite de passagem de ano, simbolizam o regresso ao estado indiferenciado e caótico de antes da formação do mundo pelos deuses. Volta-se, portanto, de algum modo ao caos das origens, para que o mundo se regenere e se reponha o cosmos: um mundo outra vez novo, ordenado, belo.
Aparentemente, é a repetição. Mas, de facto, é mesmo no novo que nos encontramos: 2022. Nunca houve nem nunca haverá um ano como este em que acabamos de entrar. É novo e único na História da Humanidade e do mundo.
Depois dos eufóricos festejos - neste ano, por causa da pandemia, quase nada -, também haverá alguns pensamentos de meditação.
É tão certo tratar-se de um ano novo que para nós constitui uma incógnita. O que acontecerá? Como será? Até certo ponto, o ano que começa é programável, mas nunca de modo adequado, pois há o completamente imprevisível: não somos senhores absolutos do tempo, do futuro. Significativamente, em algumas línguas, existem duas palavras para dizer o futuro; no alemão , por exemplo: Futur e Zukunft. Nós, embora não tão acentuadamente, também temos futuro e advento. Para dizermos o futuro até certo ponto programável, pois é continuidade do presente, e futuro enquanto não programável, pois é o que chega, o que vem, não programável. Significativamente, o último livro da Bíblia, o Apocalipse, diz o que é Deus nesta referência ao tempo: "Deus é Aquele que era, que é e que há-de vir", quando esperávamos que dissesse "e que será". Sendo Deus Aquele que vem, a História está aberta à esperança que não engana.
Nestes dias festivos, lembramos mais os amigos, os familiares, aqueles e aquelas que levamos no coração. Ao menos por esta altura, há uma saudação, uma palavra, um encontro. Mas talvez nenhum de nós, nesta lembrança, tenha deixado de deparar-se com um buraco negro: um amigo, um familiar, uma amiga, que ainda no ano passado cá estavam e já cá não estão. E é uma falta e uma tristeza e um queixume e uma pergunta e talvez uma oração (afinal, rezar também é perguntar...).
Depois, há a História e votos para o novo ano. Foi no dia 1 de Janeiro de 2002 - há vinte anos - que o euro, a nova moeda dos europeus, começou a circular de modo palpável. Desde então, é possível circular de Lisboa a Atenas, a Helsínquia ou a Berlim sempre com a mesma moeda. Quantos acreditariam ainda há poucos anos que isto havia de ser possível? Afinal, há sonhos e utopias que se tornam realidades. No ano anterior, a 15 de Dezembro, houve a Declaração Comum dos Chefes de Estado e de Governo da União Europeia, aprovada na Cimeira de Laeken: "Num mundo globalizado, mas simultaneamente muito fragmentado, a Europa deve assumir as suas responsabilidades na gestão da globalização. O papel que deve desempenhar é o de uma potência que luta decididamente contra todas as formas de violência, terror ou fanatismo, mas que também não fecha os olhos às injustiças gritantes que existem no mundo." Mas hoje sente-se algum mal-estar e até se fala em ameaças de guerra...
O dia primeiro do ano é também o Dia da Paz. A guerra só traz destruição. Foi a 8 de Dezembro de 1967 que o Papa Paulo VI propôs a criação do Dia Mundial da Paz, que se celebraria no dia 1 de Janeiro de cada ano. Como é hábito, neste ano o Papa Francisco também escreveu uma mensagem para este dia. Fica aí um apontamento.
Começa com uma constatação: "O caminho da paz permanece, infelizmente, arredio da vida real de tantos homens e mulheres e consequentemente da família humana, que nos aparece agora totalmente interligada. Apesar dos múltiplos esforços visando um diálogo construtivo entre as nações, aumenta o ruído ensurdecedor de guerras e conflitos, ao mesmo tempo que ganham espaço doenças de proporções pandémicas, pioram os efeitos das alterações climáticas e da degradação ambiental, agrava-se o drama da fome e da sede e continua a predominar um modelo económico mais baseado no individualismo do que na partilha solidária. Como nos tempos dos antigos profetas, continua também hoje a elevar-se o clamor dos pobres e da terra para implorar justiça e paz."
Para a construção de uma paz duradoura, propõe três caminhos. 1. O primeiro é o diálogo entre as gerações como ponte entre o passado e o futuro: ele é a base, forma eminente de amor para a realização de projectos compartilhados e sustentáveis. 2. A instrução e a educação são "os alicerces de uma sociedade coesa, civil, capaz de gerar esperança, riqueza e progresso". Impõe-se um novo paradigma cultural, através de "um pacto educativo global para e com as gerações jovens, que empenhe as famílias, as comunidades, as escolas e universidades, as instituições, as religiões, os governantes, a Humanidade inteira na formação de pessoas maduras". 3. O trabalho é indispensável para "construir e preservar a paz": ele constitui "expressão da pessoa e dos seus dotes, mas também compromisso, esforço, colaboração com outros, porque se trabalha sempre com ou para alguém". O trabalho "é uma necessidade, faz parte do sentido da vida nesta terra, é caminho de maturação, desenvolvimento humano e realização pessoal". Neste domínio, "é chamada a desempenhar um papel activo a política, promovendo um justo equilíbrio entre a liberdade económica e a justiça social". Bom ano de 2022!
Anselmo Borges no Diário de Notícias
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia