Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO
1. O sentido das palavras depende muito do seu uso. Um caso interessante é o da palavra caridade. Foi destacada, por S. Paulo, como a mais excelente das três virtudes teologais – fé, esperança e caridade – que é um bem definitivo e que, neste Domingo, faz parte da liturgia da Palavra [1]. De repente, este hino à caridade foi substituído pelo hino ao amor. O ganho parece evidente: ninguém se casa por esmola, para fazer uma caridade. Por isso, desertou dos casamentos. A palavra caridade, no uso corrente, deixou de ser o amor mais excelente, o amor da pura gratuidade para ser apenas uma esmola.
Fez bem o Papa Bento XVI, na Encíclica Deus caritas est (2005), ao tentar esclarecer o vocabulário do amor: “O primeiro obstáculo que encontramos é um problema de linguagem. O termo amor tornou-se hoje uma das palavras mais usadas e mesmo abusadas, à qual associamos significados completamente diferentes.” O tema desta Encíclica está concentrado na questão da compreensão e da prática do amor na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja. Mas, como observa Bento XVI, não podemos prescindir pura e simplesmente do significado que esta palavra tem nas várias culturas e na linguagem actual. Ao explicitar o vasto campo semântico da palavra amor, lembra algo muito corrente: o amor da pátria, amor à profissão, amor entre amigos, amor ao trabalho, amor entre pais e filhos, entre irmãos e familiares, amor ao próximo e amor a Deus. “Em toda esta gama de significados, porém, o amor entre o homem e a mulher, no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma e se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistível, sobressai como arquétipo de amor por excelência, de tal modo que, comparados com ele, à primeira vista todos os demais tipos de amor se ofuscam.” Surge então a questão: todas estas formas de amor, no fim de contas, apesar de toda a diversidade das suas manifestações, unificam-se como sendo um só amor, ou, pelo contrário, utilizamos uma mesma palavra para indicar realidades totalmente diferentes?
“Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade, mas de certa forma impõe-se ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de eros. Diga-se, desde já, que o Antigo Testamento grego usa só duas vezes a palavra eros, enquanto o Novo Testamento nunca a usa: das três palavras gregas relacionadas com o amor – eros, philia (amor de amizade) e agape – os escritos neo-testamentários privilegiam a última, que, na linguagem grega, era quase posta de lado. Quanto ao amor de amizade (philia), este é retomado com um significado mais profundo no Evangelho de João para exprimir a relação entre Jesus e os seus discípulos. A marginalização da palavra eros, juntamente com a nova visão do amor que se exprime através da palavra agape, denota sem dúvida, na novidade do cristianismo, algo de essencial e próprio relativamente à compreensão do amor. Na crítica ao cristianismo que se foi desenvolvendo com radicalismo crescente a partir do iluminismo, esta novidade foi avaliada de forma absolutamente negativa. Segundo Friedrich Nietzsche, o cristianismo teria dado veneno a beber ao eros, que, embora não tivesse morrido, daí teria recebido o impulso para degenerar em vício. Este filósofo alemão exprimia assim uma sensação muito generalizada: com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não nos torna porventura amarga a coisa mais bela da vida? Porventura não assinala ela proibições precisamente onde a alegria, preparada para nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo do Divino?” [2]
Não vou deixar, aqui, as respostas que Bento XVI dá às suas perguntas. O texto está publicado e é de fácil consulta no Google.
2. O vocabulário não é tudo. Mais importantes são as atitudes concretas que excedem todas as palavras.
Por outro lado, o Papa Francisco, na sua Exortação Apostólica Amoris Laetitia (2016), preocupou-se precisamente por ajudar as famílias a descobrirem a alegria do amor. Este documento produziu não só acolhimentos fervorosos, mas também acusações de que o Papa, com a sua misericórdia e paciência, estava a descuidar as duras exigências do ideal evangélico. A esta acusação respondeu de forma muito clara: “Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina objectiva, não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada. Os pastores, que propõem aos fiéis o ideal pleno do Evangelho e a doutrina da Igreja, devem ajudá-los também a assumir a lógica da compaixão pelas pessoas frágeis e evitar perseguições ou juízos demasiado duros e impacientes. O próprio Evangelho exige que não julguemos nem condenemos.”[3]
Não podemos esquecer algo fundamental da mesma Exortação Apostólica: “Somos chamados a viver de misericórdia, porque, primeiro, foi usada misericórdia para connosco. Não é uma proposta romântica nem uma resposta débil ao amor de Deus, que sempre quer promover as pessoas, porque a arquitrave que suporta a vida da Igreja é a misericórdia. Toda a sua acção pastoral deveria estar envolvida pela ternura com que se dirige aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de misericórdia. É verdade que, às vezes, agimos como controladores da graça e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida atormentada.” [4]
3. Não estamos condenados à tristeza da nossa condição finita. O ser humano afirma-se pelo sim que dá à vida. Não existe oposição entre eros, philia e agape, mas não podemos esquecer o melhor dos caminhos para a alegria, apontado por S. Paulo: Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como um bronze que soa ou um címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas, se não tiver amor, nada sou. Ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me aproveita. O amor é paciente, o amor é prestável, não é invejoso, não é arrogante nem orgulhoso, nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita nem guarda ressentimento. Não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais passará. (…) Agora, permanecem as três virtudes: a fé, a esperança e o amor. A maior delas, porém, é o amor.
No entanto, precisamos da esperança para nos dizer bom dia todas as manhãs.
Frei Bento Domingues
no PÚBLICO
[1] 1Cor 12, 31 – 13, 1-13
[2] Cf. Deus caritas est, n.º 2 e 3; cf. também Olivier Abel. Jérôme Porée, Vocalulário de P. Ricoeur, Minerva-Coimbra, 2010
[3] cf. Mt 7, 1; Lc 6, 37
[4] Cf. Amoris Laetitia (A Alegria do Amor), n.º 308-310