Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO
O Papa Francisco, desde o começo do seu pontificado, não só não descrimina os cristãos dos não-cristãos como tudo faz para colocar todas as pessoas e grupos em diálogo, que começa pelo acolhimento recíproco.
1. As boas causas, para vencerem, precisam de bons argumentos. O ridículo não é a melhor recomendação. A defesa da igualdade não precisa de ofender a diversidade. Não se pode exigir que, na Europa, sejam erradicadas as palavras Natal e Maria como também ninguém pode ser obrigado a usá-las. Estou a referir-me a uma pergunta que fizeram ao Papa, durante a sua viagem de regresso a Roma, depois da peregrinação ecuménica a Chipre e à Grécia, à qual reagiu: “Ah, o senhor refere-se ao documento da União Europeia sobre o Natal. Isto é um anacronismo. Ao longo da história, muitos, tantas ditaduras procuraram fazê-lo. Pense em Napoleão. Pense na ditadura nazista, na comunista...É moda própria de uma laicidade aguada, de água destilada. Mas não resultou na história. Pensando na União Europeia, há uma coisa que considero necessária: a União Europeia deve assumir os ideais dos Pais fundadores, que eram ideais de unidade, de grandeza, e ter cuidado para não abrir espaço a colonizações ideológicas. Isto poderia chegar a dividir os países, causando o colapso da União Europeia. Esta deve respeitar cada país tal como está estruturado no seu interior: optar pela variedade dos países e não pela sua uniformização. Eu acredito que não a fará; não estava nas suas intenções. Mas tem de estar atenta, porque às vezes surgem e lançam-se projectos como este e não sabem o que fazer... Não! Cada país tem a própria peculiaridade, mas está aberto aos outros. A União Europeia tem a sua soberania, soberania dos irmãos numa unidade que respeita a singularidade de cada país. Deve ter cuidado para não ser veículo de colonizações ideológicas. Por isso, aquela intervenção sobre o Natal é um anacronismo”.
A história das origens do Natal está feita e já a referi em anos passados. Importa reflectir sobre a sua significação. O Natal proclama que sem incarnação não há Cristianismo. Sublinha que Deus não é o ser infinito cuja perfeição consistiria em se guardar puro de qualquer relação contingente. A humanidade de Deus é o traço decisivo do cristianismo e da cultura ocidental, presente nas várias mutações do humanismus perennis [1]. Em 1995, a Editorial Mário Figueirinhas, publicou, com o título A humanidade de Deus, o primeiro volume das minhas crónicas no PÚBLICO.
As celebrações natalícias assumem formas diferentes, segundo os países e mesmo dentro de cada país. É a lei da incarnação. Quem julgar que o espírito do Natal cristão foi ou está a ser adulterado por abusivos interesses comerciais deve procurar suscitar e apoiar iniciativas dos movimentos de inclusão social e ajudar, também, a despertar para as linguagens culturais e cultuais que substituam as banalidades reinantes. Estas ofendem o Espírito de criatividade da autêntica fé cristã.
Como festa de reunião das famílias não pode esquecer os mais pobres, os sem abrigo, os doentes, as pessoas que vivem sós, os sem família. O nascimento de Jesus de Nazaré não aconteceu num palácio. A ideia de S. Francisco de Assis de perpetuar a representação das narrativas dos Evangelhos – o presépio – indica que os cristãos devem estar sempre de saída para as periferias. Foi numa periferia que Maria deu à luz, a Luz do Mundo. É da própria essência do Natal procurar caminhos de paz. As consequências de tantas guerras estão à vista com milhões de deslocados e refugiados. Neste momento, vivemos sob terríveis ameaças. Os cristãos só podem celebrar o Natal proclamando e trabalhando por uma cultura da paz.
2. O Quarto Evangelho, dito de S. João, não se parece com as fantásticas representações populares de S. Mateus e de S. Lucas acerca do significado teológico do nascimento do Emmanuel, Deus-connosco. Elaborou, no entanto, um poema de inesgotável profundidade. Deus fez-se fragilidade humana: O Verbo fez-se carne e habitou entre nós e nós vimos a sua glória cheio de graça e de verdade. Estabelece um nítido contraste entre o regime da Lei e o do amor de pura gratuidade: A Lei foi dada por meio de Moisés, a graça e a verdade nos vieram por Jesus Cristo. Insiste: nunca ninguém viu a Deus. O Filho unigénito, que está voltado para o seio do Pai, este o deu a conhecer [2].
Jesus de Nazaré é, portanto, o rosto humano de Deus [3]. Conta-se, no Quarto Evangelho que estamos a seguir, que, um dia, um discípulo, chamado Filipe, intrigado com tantas referências ao Pai, propôs a Jesus uma solução prática: mostra-nos o Pai e isso nos basta. O Mestre aproveitou para contrariar esse simplismo gnóstico, essa ideia de um Deus desligado da história e da experiência humana. João coloca na boca de Jesus uma declaração rotundamente anti gnóstica: Há tanto tempo que estou convosco, e não me ficaste a conhecer, Filipe? Quem me vê, vê o Pai. Como é que me dizes, então, ‘mostra-nos o Pai’ [4]. A profundidade divina só pode acontecer e viver no que é verdadeiramente humano. Fora da história do mundo não há salvação, mas a salvação consiste, precisamente, em derrotar a desumanidade, nunca em criar mais desumanidade, como acontece muitas vezes em nome da religião e de um falso cristianismo.
3. O refrão do Salmo, cantado na Eucaristia de hoje, insiste: Mostrai-nos, Senhor, o vosso rosto e seremos salvos. Como já ficou dito, a Deus ninguém o viu, ninguém o pode reconhecer fora da história de contrastes da humanidade. Afinal, o rosto de Deus mostrou-se no curral de Belém, numa periferia. Foi revelado aos que não frequentavam o Templo nem as expressões da religião oficial.
O potencial das actuais celebrações natalícias manifesta-se quando elas desafiam, de todas as maneiras possíveis, a desumanidade que percorre todos os países e continentes. Se o não fizerem, colaboram na ocultação dos rostos Deus. É a colaboração de todos os que ajudam a não deixar ninguém abandonado e perdido na sua desgraça que nos pode salvar. São esses os incontáveis rostos humanos da generosidade misericordiosa de Deus. Só nos salvamos, salvando.
Se, pelo contrário, as celebrações do Natal contribuíssem para nos afastar dos não-cristãos, seriam elas que estariam em contradição com o espírito do Natal. O Papa Francisco, desde o começo do seu pontificado, não só não descrimina os cristãos dos não-cristãos como tudo faz para colocar todas as pessoas e grupos em diálogo, que começa pelo acolhimento recíproco. Dentro e fora do Vaticano, em todos os seus encontros nas periferias de diferentes países, nunca faz acepção de pessoas ou de grupos. Tenta ajudar a renascer a alegria do Evangelho, adoptando o estilo de Jesus de Nazaré interpretado por Francisco de Assis. Quem luta contra as descriminações tem no Natal cristão um aliado universal, não um inimigo. A diferença cristã é contra a indiferença, mas a favor de todas as diferenças que revelam uma humanidade una e múltipla, de muitos rostos, fraterna. Santo Natal!
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. José Augusto Mourão, Luz Desarmada, Ed. Prefácio, 2006, págs. 18 e 150
[2] Jo 1, 14. 16-18
[3] Cf. A. Cunha de Oliveira, O Rosto Humano de Deus, Instituto Açoriano de Cultura 2014
[4] Jo 14, 9