sábado, 13 de novembro de 2021

Podemos "definir" Deus?

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

"A religião pura e sem mancha consiste em visitar os órfãos e as viúvas."

1. É evidente que, em sentido estrito, não podemos definir Deus. Ele é o Infinito, o Mistério da Ultimidade e, por isso, está sempre para lá de tudo o que possamos pensar ou dizer d'Ele.
O que dizemos fica sempre aquém. Mas as religiões sempre tentaram. A Bíblia também.
Duas vezes fundamentalmente a Bíblia tenta dar uma "definição" de Deus. A primeira pertence ao Antigo Testamento: "Eu sou Aquele que sou", diz Deus. A segunda é do Novo Testamento: "Deus é Amor." "Eu sou Aquele que sou" é o nome do próprio Deus, revelado a Moisés, e significa: Eu sou aquele que está convosco. "Deus é Amor" procede da experiência feita com Deus através da experiência com Jesus enquanto encarnação desse amor na sua universalidade, e é, nas palavras do grande teólogo Karl Barth, "a definição fundamental" de Deus: "Deus ama! (...) tal é a essência de Deus que aparece na revelação do seu nome. "Deus é" quer dizer: "Deus ama"."
O que, na história das religiões, é característico do judaico-cristianismo é a revelação de Deus como amor, que se compromete e age na História. Criou o mundo exclusivamente por amor. Um mundo contingente, que existe, mas podia pura e simplesmente não existir. E só um mundo contingente, histórico, com uma origem, pode estar a caminho da salvação e plenitude final, pois, como escreveu o teólogo Ruiz de la Pena, "o que não vem de parte nenhuma não vai para parte nenhuma, circula girando eternamente sobre si na contemplação especular do unívoco". Também só um Deus pessoal pode salvar a pessoa concreta da morte definitiva. Perante a morte, é sempre possível remeter para uma imortalidade impessoal. Mas a imortalidade impessoal, pela sua própria definição, é a imortalidade de ninguém. A consciência da morte é sempre pessoal e única: pela angústia, sou remetido para o eu único que se sente ameaçado pelo nada, e desse nada só o Deus pessoal, comprometido com os homens e as mulheres enquanto pessoas, pode libertar e salvar. Por isso, no domínio religioso, a distinção nuclear passa pela aceitação ou não do Deus pessoal. De facto, pode ser-se simultaneamente religioso e ateu: religioso, mediante o sentimento oceânico, por exemplo, ou a veneração panteísta da Natureza, e ateu, porque se não acredita em Deus enquanto pessoa.
A Bíblia tem como núcleo precisamente a famosa história do livro do Êxodo, capítulo 3, onde Deus revela o seu nome a Moisés: "Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egipto. Ouvi o seu clamor por causa dos seus opressores; eu conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios." Moisés disse a Deus: "Que direi, quando me perguntarem qual é o teu nome?" Deus respondeu a Moisés: "Eu sou o eu sou aí convosco e para vós." Este é o nome de Deus: o "eu-sou-junto-de-vós". Há aqui uma experiência nova de Deus. O Deus bíblico nada tem a ver com os deuses-senhores do poder e da dominação. Quem oprime e humilha os homens e as mulheres não pode reclamar-se d'Ele, pois Ele repudia a escravidão e todo o tipo de opressão. O seu acordo e compromisso é exclusivamente com a liberdade.
O Deus bíblico, que é o Deus da aliança com homens e mulheres livres, não se manifesta como Senhor, à maneira dos reis e deuses da antiguidade, nomeadamente da Babilónia e do Egipto, que eram os senhores dos seus territórios e dos seus subordinados. É certo que na Bíblia aparece a palavra Senhor referida a Deus. Mas isso foi sobretudo por influência da tradução grega, que traduziu o original hebraico Javé por Senhor (Kyrios). Assim, onde hoje lemos em português: "Eu sou o Senhor, teu Deus", deveria estar, em conformidade com o original: "Eu sou Javé, teu Deus", e Javé significa: "Eu estarei convosco, eu sou Aquele que está convosco", o que é completamente diferente do Senhor dominador, que se tem de aguentar e suportar.
Por isso, Jesus, em quem se manifestou a amabilidade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor pelos homens, não reivindicou título senhorial. Veio como aquele que serve. É certo que os cristãos cedo o invocaram como Senhor, mas tinha desaparecido a distância dominadora do culto imperial. É assim que, por exemplo, aquele passo do Evangelho: "Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor, entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos Céus", quer dizer que Jesus só é "Senhor" da sua Igreja, quando nela se realiza o seu projecto: vive-se o amor e a fraternidade, oferece-se o perdão e a paz, promove-se a liberdade e a dignidade, em dinamismo inteligente e racional, pois o Logos (Razão, Inteligência) é divino.
Por causa de um dogmatismo seco, de estruturas hierarquizadas de poder e da funcionarização do clero, a Igreja também é responsável pela passividade mental de muitos. Embora a interrogação seja dos lugares cimeiros da presença de Deus para o Homem, a capacidade de pôr perguntas ficou muitas vezes tolhida e anémica. Em presença de um Deus menor, a dignidade infinita de ser ser humano atrofia-se. Há ainda quem faça preceder o nome de um D. (lê-se Dom, que é abreviatura do latim Dominus, que significa Senhor). Mas uma Igreja de senhores atraiçoaria o Deus bíblico.
É na tradição do Êxodo, saída da escravidão para a liberdade e a dignidade que Jesus se compreende. São Tiago escreverá, na linha dos profetas, que desprezaram os sacrifícios culturais e reclamaram a justiça e a liberdade para os pobres e humilhados: "A religião pura e sem mancha consiste em visitar os órfãos e as viúvas."

Anselmo Borges no Diário de Notícias

Padre e professor de Filosofia.Escreve de acordo com a antiga ortografia

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