domingo, 3 de outubro de 2021

Não há família. Há famílias

Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO


Os modelos de família dependem das culturas em que se afirmam. Nunca foram os mesmos em todo o tempo. A sua diversidade não é contra a família, são formas diferentes de testemunhar a sua importância. Nenhuma delas é o céu na terra.

1. A crise religiosa de muitos adolescentes e jovens, que frequentaram a catequese, revela-se sobretudo na escola, quando as descobertas que vão fazendo desautorizam o que ouvem na Igreja. O padre Resina, que ensinou Física no Instituto Superior Técnico, defendia que a catequese devia antecipar-se a desfazer os conflitos entre as apresentações e interpretações da fé e a linguagem das ciências. As próprias narrativas bíblicas, na grande diversidade dos géneros literários, nunca pretendem fazer ciência, mas a sua floresta simbólica deu e dá muito que pensar, com grande presença na literatura, na música e na pintura.
A liturgia deste domingo recorre à segunda narrativa mítica sobre o casal humano. Na primeira, era dito que “Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; criou-os homem e mulher”.
A segunda é mais complexa. A mulher resulta como resposta à solidão do homem: “O Senhor Deus disse: ‘Não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele’. Então, o Senhor Deus, após ter formado da terra todos os animais dos campos e todas as aves dos céus, conduziu-os até junto do homem, a fim de verificar como ele os chamaria, para que todos os seres vivos fossem conhecidos pelos nomes que o homem lhes desse. O homem designou com nomes todos os animais domésticos, todas as aves dos céus e todos os animais ferozes; contudo, não encontrou auxiliar semelhante a ele. Então, o Senhor Deus fez cair sobre o homem um sono profundo; e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das suas costelas, cujo lugar preencheu de carne. Da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem. Então, o homem exclamou: ‘Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem!’ Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne" [1].
Seria ridículo incriminar quem compôs estes contos por não ter consultado Charles Darwin (século XIX), sobre a sua teoria da evolução, nem os cálculos da origem da nossa espécie e a sua difusão a partir da África Subsariana. Segundo a investigadora, Luísa Pereira entre muitos outros cientistas, a diversidade genética do mundo actual saiu dali [2].
Estas narrativas pertencem aos mitos de origem. Quem as ler como um dogma assinado por Deus perde o seu tempo e a ocasião de desfrutar duas admiráveis peças literárias, que dizem a atracção mútua do homem e da mulher, reflectindo também as ambiguidades da cultura patriarcal.
A leitura do Evangelho, proposta para este domingo, tem dificuldades especiais por ser mal lida, não reparando que Jesus está a responder a uma provocação antifeminista, como diz o texto. Não diz repudiar o homem. S. Mateus acrescenta: repudiar a própria mulher por qualquer motivo. Os discípulos perceberam isso muito bem: “se é assim a condição do homem em relação à mulher, não vale a pena casar”. Jesus observa que há pessoas que não podem casar por razões naturais ou então por escolha e até por escolha espiritual, por causa do Reino dos Céus. Quem tiver capacidade para compreender, compreenda. E mais não disse [3]. No entanto, pretende-se ver na resposta de Jesus um dogma sobre a indissolubilidade do casamento, como se fosse fácil saber quando é que um casamento tem assinatura divina. Repito: o que Jesus não aceita é que o marido possa fazer da mulher o que lhe apetecer.
No panorama actual, estamos sempre a ouvir relatos de violência em casamentos e em namoros. Os movimentos feministas têm lutado para que os direitos e deveres do homem e da mulher sejam os mesmos.

2. Os modelos de família dependem das culturas em que se afirmam. Nunca foram os mesmos em todo o tempo e lugar e, hoje, devido sobretudo à emigração, em muitos países, encontram-se os mais diversos modelos de família. A sua diversidade não é contra a família, são formas diferentes de testemunhar a sua importância. Nenhuma delas é o céu na terra.
O que está acontecer de novo é o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o chamado Casamento para Todos, já legalizado em 30 países.
O Papa Francisco começou por dizer, para espanto de muita gente: “Se uma pessoa é gay e procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para a julgar?” Defendeu que os homossexuais devem ser bem acolhidos na família. No documentário Francesco, manifestou apoio à criação de leis para garantir a união civil de casais do mesmo sexo. Em todas as suas intervenções, nunca confundiu essas uniões com a noção católica de casamento, mas também nunca fez juízos morais sobre essas uniões, designando-as como pecaminosas, como era corrente fazer.

3. No mundo católico, através de muitas ambiguidades, o casamento foi sempre acarinhado e honrado a ponto de fazer dele um dos sete sacramentos, um caminho de santidade. Coexistiu com pessoas celibatárias “por causa do reino dos céus”. O celibato obrigatório, para o clero na Igreja romana, nem sempre existiu nem tem promessa de eternidade. As suas vantagens não estão a superar as desvantagens. A maioria dos padres, que abandonou o ministério, não o teria feito se pudesse constituir família.
Quando estava a finalizar esta crónica, referindo-me à espiritualidade conjugal e familiar de um documento do Papa Francisco, que causou muita polémica [4], fui surpreendido por uma convocatória do Bispo de Roma, que desfaz todas as ambiguidades possíveis acerca do sínodo destinado a abrir todas as portas e janelas, sem espaços reservados ou limites, sem tabus. No espaço que me resta, só posso fazer uma breve referência a um longo texto turbulento e inquietante. Terei ocasião de lhe fazer mais eco.
Realça que o cristianismo deve ser sempre humano, humanizante, deve reconciliar diferenças e distâncias, transformando-as em familiaridade, em proximidade. Um dos males da Igreja, aliás uma perversão, é esse clericalismo que separa o padre, o bispo das pessoas. O bispo e o padre separado das pessoas é um funcionário, não é um pastor. Em nome de Deus, não se pode discriminar. E a discriminação é um pecado também entre nós: “Nós somos os puros, nós somos os eleitos, nós somos deste movimento que sabe tudo, nós somos…”. Não. Nós somos Igreja, todos juntos. São Paulo VI gostava de citar a máxima de Terêncio: “Sou homem, nada do que é humano me é estranho”.
Quando a Igreja se fecha, já não é Igreja, mas uma bela associação piedosa, porque enjaula o Espírito Santo que, na sua liberdade, não conhece fronteiras e nem se deixa limitar pelas pertenças [5].
Não é a família, são todas as formas de família que devem ser escutadas.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO 

[1] Gn 2, 18-24
[2] Cf. DN, pág. 12-14, de 26/09/2021
[3] Cf. Mt 19, 1-12
[4] Exortação Pós-sinodal, Amoris Laetitia, sobre o amor na família (2016)
[5] Papa Francisco, Documento: Deus é sempre um Deus das surpresas, cf. 7Margens, 25. 09. 2021

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue