no PÚBLICO
O Sínodo vai até aos limites, inclui a todos. O Sínodo também é abrir espaço para o diálogo sobre as nossas misérias.
1. Nos grandes meios de comunicação, as notícias sobre a Igreja continuam a insistir, e com toda a razão, nos crimes de pedofilia do clero. No dia 5 deste mês, foi divulgado o Relatório Final, elaborado por uma Comissão independente a pedido da própria Igreja francesa, que analisou um período de 70 anos em França, apresentando números assustadores. Dizem-me que estou a ser ingénuo: para conhecer as verdadeiras dimensões dessa tragédia falta revelar o que se passa no seio de muitas famílias. O que está a acontecer na Igreja, além das medidas para erradicar essa calamidade em todas as dioceses, é, no meu entender, uma autêntica revolução. Não se trata, apenas, de enfrentar algumas questões sectoriais. O que o Papa Francisco tem feito, por sua conta e risco, e continua a fazer, é muito importante. Agora, inaugurou um processo radical. Não quer que a Igreja seja do Papa Francisco, dos cardeais, dos bispos e dos padres. A autoridade não está na cátedra, na mitra, no báculo ou no cabeção dos padres.
O processo que desencadeou com o chamado caminho sinodal, “caminhar juntos”, convoca todos os cristãos que se dizem católicos. Devem ser eles, com o sopro do Espírito Santo, a começar já a desenhar e a ensaiar o que deve ser a criatividade das comunidades, desafiadas pela visão e escuta dos sinais dos tempos e lugares em mudança. O que diz respeito a todos deve ser tratado por todos. É um caminho fraterno, no qual cada um tem de dar sempre oportunidade à criatividade do outro.
No momento em que escrevo, além de dois documentos preparatórios do sínodo [1], só tenho acesso ao Programa que, ontem, inaugurou, oficialmente, esse caminho, o Sínodo de toda a Igreja. Esse programa incluía trabalho em sessão plenária e trabalho em grupos linguísticos. Estariam presentes representantes da catolicidade, incluindo delegados dos Encontros Internacionais das Conferências Episcopais e Órgãos semelhantes, membros da Cúria Romana, delegados fraternos, delegados da vida consagrada e movimentos eclesiais leigos, conselho juvenil, etc. O Papa Francisco participaria da primeira parte dos trabalhos e, hoje, celebra a Eucaristia desse caminho novo. Continuará a apoiá-lo para que seja respeitada a sua autenticidade.
O próprio Papa confessou, no seu discurso à sua Diocese, a diocese de Roma [2]: Há muitas resistências para superar a imagem de uma Igreja que faz uma distinção rígida entre chefes e subalternos, entre quem ensina e quem deve aprender, esquecendo-se de que Deus gosta de inverter as posições: “Derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes” [3].
Caminhar juntos leva a descobrir, como linha própria, a horizontalidade em vez da verticalidade. A Igreja sinodal restaura o horizonte do qual surge o sol, Cristo: erigir monumentos hierárquicos significa encobri-lo. Recorreu à parábola bem conhecida do Novo Testamento, sobre o bom pastor: Os pastores caminham com o povo: nós, pastores, caminhamos com o povo, às vezes na frente, às vezes no meio, às vezes atrás. O bom pastor deve movimentar-se assim: na frente para guiar, no meio para encorajar e não esquecer o cheiro do rebanho, atrás porque o povo também tem “faro”. Tem faro para encontrar novas vias para o caminho ou para encontrar a estrada perdida.
Bergoglio disse expressamente: Quero sublinhar isso, e também aos bispos e aos padres da diocese. No vosso caminho sinodal, perguntem-se: “Eu sou capaz de caminhar, de me movimentar na frente, no meio e atrás, ou estou apenas na cátedra, mitra e báculo?”. Pastores misturados, mas pastores, não rebanho: o rebanho sabe que somos pastores, o rebanho sabe a diferença. Na frente para indicar a estrada, no meio para sentir o que o povo sente e atrás para ajudar quem fica um pouco para trás e para deixar que o povo veja um pouco com o seu faro onde estão as melhores ervas.
2. Para envolver, de forma activa, todos os fiéis neste processo, usou uma conhecida expressão teológica, sensus fidei (sentido e sensibilidade da fé), que qualifica todos na dignidade da função profética de Cristo [4], para que possam discernir quais são os caminhos do Evangelho no presente. É o “faro” das ovelhas. Mas prestemos atenção porque, na história da salvação, todos somos ovelhas em relação ao Pastor que é o Senhor. A imagem ajuda-nos a entender as duas dimensões que contribuem para esse “faro”. Uma pessoal e outra comunitária: somos ovelhas e fazemos parte do rebanho, que neste caso representa a Igreja.
Nessa longa apresentação aos diocesanos de Roma, lembrou uma expressão lapidar de Santo Agostinho: “Convosco sou ovelha, para vós sou pastor”.
Observou com muita pertinência: preocupamo-nos tanto, e com razão, em que tudo possa honrar as celebrações litúrgicas, e isso é bom – ainda que muitas vezes acabemos confortando-nos apenas a nós mesmos –, mas São João Crisóstomo admoesta-nos: “Queres honrar o corpo de Cristo? Não permitas que ele seja objecto de desprezo nos seus membros, isto é, nos pobres, desprovidos de panos para se cobrirem. Não o honres aqui na igreja com tecidos de seda, enquanto lá fora tu o ignoras quando ele sofre com o frio e a nudez. Aquele que disse: Isto é o meu corpo, confirmando o facto com a palavra, também disse: vós vistes-me com fome e não me destes de comer e sempre que não fizestes essas coisas a um dos mais pequenos, também não o fizestes a mim” [5].
“Mas, padre, o que está dizer? Os pobres, os mendigos, os jovens toxicodependentes, todos esses que a sociedade descarta, fazem parte do Sínodo?” Sim, meu caro, sim, minha cara: não sou eu quem diz, quem o diz é o Senhor: eles fazem parte da Igreja. (…) O Sínodo vai até aos limites, inclui a todos. O Sínodo também é abrir espaço para o diálogo sobre as nossas misérias.
3. Sempre me irritou o uso e abuso da expressão exclusivista: povo de Deus. O Papa esclareceu: gostaria de especificar que, mesmo sobre o conceito de povo de Deus, pode haver hermenêuticas rígidas e antagónicas, presas à ideia de exclusividade, de privilégio, como ocorreu com a interpretação do conceito de eleição que os profetas corrigiram, indicando como ele deveria ser rectamente entendido.
Não se trata de um privilégio – ser povo de Deus – mas de um dom que alguém recebe. Para si mesmo? Não: para todos; o dom é para doar: essa é a vocação. É um dom que alguém recebe para todos, é um dom que é também uma responsabilidade.
(…) A eleição é um dom, e a pergunta é: como é que doo o meu modo de ser cristão, a minha confissão cristã? A vontade salvífica universal de Deus oferece-se à história, a toda a humanidade por meio da encarnação do Filho, para que todos, pela mediação da Igreja, possam tornar-se filhos seus e irmãos e irmãs entre si. É desse modo que se realiza a reconciliação universal entre Deus e a humanidade, aquela unidade de todo o género humano de que a Igreja é sinal e instrumento [6].
O longo discurso do Papa, à sua diocese (Roma), é um sermão anticlerical. Merece ser meditado na íntegra.
Frei Bento Domingues
Público
[1] Para uma Igreja Sinodal: Comunhão, Participação e Missão e Vademecum para o Sínodo da Sinodalidade
[2] 25/09/21, tirado da newsletter do Instituto Humanitas da Unisinos, Brasil
[3] Lc 1,52
[4] Cf. Lumen gentium, n. 34-35
[5] Homilias sobre o Evangelho de Mateus, 50, 3
[6] Cf. Lumen gentium, n. 1
O autor é colunista do PÚBLICO