segunda-feira, 19 de julho de 2021

Nem Jesus teve as férias que planeou

Crónica de Bento Domingues 



Não temos as férias que precisamos ou desejamos. São as possíveis e, muitas vezes, são impossíveis. São o reflexo de uma sociedade muito desigual e injusta.


1. Estamos em época de férias. O ser humano, para se respeitar a si próprio, tem de satisfazer várias dimensões da sua vida. O descanso, as férias, segundo as diferentes culturas, lembram que o ser humano não é só para trabalhar.
Não temos as férias que precisamos ou desejamos. São as possíveis e, muitas vezes, são impossíveis. Dependem de muitos factores: da idade, da saúde, da profissão, da capacidade económica, etc. A fragilidade das férias depende da fragilidade das pessoas, das situações e das instituições. À partida, são o reflexo de uma sociedade muito desigual e injusta. O direito a férias não as pode garantir.
Na aldeia em que nasci, ninguém sabia o que eram férias. Eram sobretudo as festas religiosas, muito frequentes a partir de Maio, que interrompiam a dureza do trabalho e incentivavam as expressões da cultura popular. É verdade que, semana a semana, o Domingo marcava o ritmo do tempo, chovesse ou desse sol. Nesse dia e nos dias “santos de guarda”, o trabalho era obrigatoriamente suspenso.
O Sábado, no judaísmo – na religião em que Jesus foi educado –, era uma instituição sagrada, tão sagrada que levou o autor bíblico a dizer que, no sétimo dia, até Deus descansou da sua obra de criação. A sua sacralização extrema exigiu regulamentações, tão minuciosas, que tornaram essa maravilha opressora e ridícula. Foi contra esse fundamentalismo que Jesus manifestava um gosto muito especial em violar o Sábado em favor das vítimas de doenças prolongadas. No Evangelho segundo S. Lucas, o chefe da sinagoga não está nada contra as curas feitas por Jesus. O que ele não suportava era que o Nazareno escolhesse esse dia para as realizar: Há seis dias para o trabalho; portanto, vinde nesses dias para serdes curados e não no dia de Sábado [1]. Jesus não só não fazia caso dessa razoável advertência, como invocava uma atrevida razão teológica: o meu Pai trabalha sempre e eu também [2]. Depois, vinha a razão humanista: o Sábado foi feito para o ser humano e não o ser humano para o Sábado [3]. O dia dedicado a Deus tem de ser o dia da nossa libertação e alegria. Sem essa dimensão, os preceitos religiosos podem tornar-se opressores e cair no ridículo. Como o próprio Jesus observou, “cada um de vós, no Sábado, não solta o seu boi ou o seu burro do estábulo para o levar a beber? E esta filha de Abraão, que satanás prendeu há dezoito anos, não convinha soltá-la no dia de Sábado?”. O Direito Canónico da Igreja Católica também trocou o princípio divino – Eu quero misericórdia, não sacrifício [4] – por exigências ridículas.

2. Na celebração deste Domingo, que se prolonga no próximo, S. Marcos conta uma história sobre a precariedade dos nossos desejos de férias, de descanso. Jesus não conseguia prever o inesperado: “Os apóstolos reuniram-se com Jesus e contaram tudo o que tinham feito e ensinado. O Mestre ficou impressionado e disse-lhes: Vinde sozinhos para um lugar deserto e descansai um pouco. Porque eram tantos os que iam e vinham que não tinham tempo nem para comer. Foram, então, sozinhos de barco para um lugar deserto e afastado. Muitos viram-nos partir e perceberam para onde iam. E, a pé, de todas cidades, acorreram àquele lugar e chegaram primeiro que eles.
“Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, então, a ensinar-lhes muitas coisas.” [5]
E lá se foram as férias. Sem querer, até se meteu em novos trabalhos, porque não podia mandar as pessoas embora. Perdeu o sentido das horas e foram os discípulos que lhe lembraram que o sermão tinha sido demasiado longo e nem teve em conta o lugar em que se encontravam. Então disseram-lhe: manda as pessoas embora para que possam arranjar algo para comer. Nessa altura, lança uma provocação aos discípulos tão cuidadosos: dai-lhes vós de comer. Como sempre, eles não entenderam nada. Chamam-no à realidade: só temos cinco pães e dois peixes, o que é isto para tanta gente? Mesmo assim, diz-lhes: mandai sentar as pessoas por grupos. Improvisou um piquenique. Mandou distribuir o pão e os peixes. E aconteceu o milagre: cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças, comeram quanto quiseram e ainda sobraram 12 cestos.
A narrativa tem muitos sentidos. O mais óbvio serve para os tempos de hoje. Há muita fome, muita miséria, mas não é por falta de riqueza. O que falta é o reconhecimento do seu destino universal, da sua repartição justa. Seria ridículo pedir outro milagre a Jesus Cristo. Os milagres não são para resolver o que deve ser resolvido por nossa conta e risco. São uma pedrada no charco para nos lembrar que a situação mundial e local é responsabilidade nossa. Uma nova cultura, uma nova economia, uma nova política tem sido o empenhamento do Papa Francisco para suscitar novas iniciativas.

3. Segundo os quatro Evangelhos, não era só para descansar que Jesus se retirava para lugares desertos. Todos referem que, sozinho, procurava esses lugares de silêncio para a oração, para o encontro com o seu Deus [6]. Não gostava de fazer da oração espectáculo religioso. Era muito crítico em relação aos que gostavam de exibir a sua religiosidade para serem admirados. Chegava mesmo a dizer aos discípulos que, quando rezassem, não gastassem muito palavreado e que se fechassem no quarto para serem vistos só por Deus [7].
Todos os anos há leitores destas crónicas que me pedem um bom livro para férias e, quando me esqueço, lembram-me. Este ano e na linha desta crónica, recomendo O Poder do Silêncio. É uma obra organizada por Alberto Filipe Araújo, professor catedrático da Universidade do Minho, com uma colaboração muito diversificada [8].
Pode parecer estranho recomendar, para férias, uma obra sobre o silêncio, quando, em geral, muita gente o que procura é, precisamente, o barulho, as festas e as manifestações ruidosas. O silêncio é o inimigo.
Neste tempo de pandemia, de confinamento de tudo, as pessoas suspiram por largar as máscaras, abraçar os amigos, deixar de ser uma sociedade de surdos e mudos e saírem à noite sem travões nem avisos, completamente à vontade. Não suportam a vigilância e a censura dos observantes das boas regras. Dizem que já é tempo de acabar com tantos cuidados. O resultado não desejado é o aumento dos infectados e das mortes. Isto sem referir a onda dos negacionistas, dos que recusam as vacinas e que se tornam uma fonte de novas infecções, como se fosse possível arranjar-lhes um território independente.
Por tudo isso e muito mais, o silêncio não é o grande inimigo. O que falta é escutar as vozes do silêncio que nos conduzem às nossas fontes interiores, sem as quais, as palavras são vazias.
Se os seres humanos tivessem no silêncio a mesma capacidade que têm no falar, o mundo seria muito mais feliz (B. Spinoza: 1632-1677).

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Lc 13, 10-17
[2] Jo 5, 17-30
[3] Mc 2, 23-28 e paralelos
[4] Mt 9, 13; 12, 7
[5] Mc 6, 30-34
[6] Mc 1, 35-37 e paralelos
[7] Mt 6, 5-8
[8] Alberto Filipe Araújo (Org.), O Poder do Silêncio. Ensaio e testemunhos, ISMAI 2021

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