domingo, 4 de julho de 2021

A alegria de uma nova liberdade

Crónica de Bento Domingues 
no PÚBLICO

A história do Mundo, das Religiões e da Igreja 
não está fechada. Tudo tem de ser recreado.

1. Hans Küng, ao escolher o desafiante modelo cristão para a sua vida, não deixou de se confrontar com outros modelos: hindu, budista, confucionista, judaico e muçulmano. Não para os desvalorizar, mas para permitir um diálogo lúcido entre todos. Tendo aprendido muito com todos, não quis, no entanto, deixar de manifestar a sua preferência. Para ele, a vida, os ensinamentos e a actividade de Jesus de Nazaré sobressaem, claramente, em comparação com outros fundadores de religiões. 
O melhor é dar a palavra ao ilustre investigador: “Jesus não foi uma pessoa formada na corte, como aparentemente foi Moisés, nem filho de príncipe, como Buda. Mas também não foi um erudito e político, como K'ung Fu-tzu, nem um comerciante rico e cosmopolita, como Maomé. É precisamente pela sua condição social ser tão insignificante que a sua importância douradora parece ainda mais espantosa. Ele não defende a validade incondicional de uma lei escrita que se desenvolve sem cessar (Moisés), nem o retiro monástico em ascético ensimesmamento dentro da comunidade regulamentada de uma ordem (Buda), nem a renovação da moral tradicional e da sociedade estabelecida em consonância com uma lei cósmica universal (k’ung Fu-tzu), nem revolucionárias conquistas violentas em luta contra os infiéis e a fundação de um Estado teocrático (Maomé). 
“Jesus também me parece inconfundível no sistema de coordenadas da sua época. Não se deixa enquadrar com os poderosos nem com os rebeldes do país, nem com os moralizadores nem com os submissos. Revela-se como um provocador, mas tanto à direita como à esquerda. Não está protegido por nenhum partido, desafia em todas as direcções: ‘O homem que quebrava todos os esquemas’ (Eduard Schweizer). Não é sacerdote, mas parece estar mais perto de Deus do que os sacerdotes. Não é um revolucionário político ou social, mas parece mais revolucionário do que os revolucionários. Não é um monge, mas parece mais livre em relação ao mundo do que os ascetas. Não é um casuísta moral, mas tem mais fibra moral do que os moralistas. Os evangelhos mostram incessantemente: Jesus é diferente! Apesar dos múltiplos paralelismos em pormenores concretos, o Jesus de Nazaré histórico revela-se, em conjunto, totalmente inconfundível, tanto nesse tempo como na actualidade. 
“Tendo em vista a nossa práxis vital, o aspecto decisivo da mensagem de Jesus, do reino e da vontade de Deus, é totalmente inequívoca: em ditos, parábolas e factos, ganha forma a proclamação alegre e grata de uma nova liberdade. Para mim, aqui e agora, isto significa: precisamente em tempos de febre bolsista e de valor das acções das empresas, não se deixar dominar pela avidez de dinheiro e prestígio; precisamente em tempos de renascimento de uma política imperialista, não se deixar influenciar pela vontade de poder; precisamente em tempos de desaparecimento inaudito de tabus e consumismo desenfreado, não se deixar escravizar pela propensão para o sexo nem pela ânsia de prazer e diversão; precisamente em tempos em que só o rendimento parece determinar o valor da pessoa, defender a dignidade humana dos fracos, ‘improdutivos’ e pobres” [1]. 

2. Em cada época, em cada lugar e em cada situação, o cristão tem de perguntar: o que é que devo fazer para ser fiel ao Espírito criador do Nazareno? 
Jesus não deixou uma cartilha universal e intemporal para responder às nossas dificuldades e interrogações. Não escreveu nada. Foram os discípulos convertidos que, a partir do que era vivido e discutido na memória e na criatividade das diferentes comunidades cristãs, escreveram a novidade da palavra e da prática deste homem espantosamente livre. Não como cópia, mas como espírito de criatividade: a letra mata, é o espírito que vivifica a memória do passado e a invenção do presente. Cada época e cada situação social e cultural têm desafios inéditos. É o Espírito de Jesus que nos desafia a encontrar os caminhos para resolver o que deve ser resolvido, por nossa conta e risco, segundo as circunstâncias sempre em mudança. 
É a fidelidade a Jesus Cristo que exige uma viragem no modo de entender, viver e entrevir na história humana. É atribuída a Terêncio (185 a.C.-159 a.C.) uma declaração absolutamente extraordinária: Sou um homem: nada do que é humano me é estranho. Para o Papa Francisco, tudo o que ofende a condição humana, seja de quem for, seja onde for, exige a nossa intervenção fraterna. Somos todos irmãos (Fratelli tutti). 
A grande viragem, porém, não é um acontecimento recente: pertence à própria essência do cristianismo. Segundo S. João, o próprio Verbo de Deus fez-se carne, fragilidade humana, tornou-se o rosto humano do puro mistério de Deus. Revelou não só quanto Deus é misterioso, mas também como é misteriosa a condição humana. 
A história do Mundo, das Religiões e da Igreja não está fechada. Tudo tem de ser recreado. 

3. Na audiência do dia 23 de Junho, o Papa Francisco levou-nos a reflectir sobre alguns temas que o apóstolo Paulo propõe na sua Carta aos Gálatas. 
Considera que é uma Carta muito importante, decisiva, não só para conhecer melhor o Apóstolo, mas sobretudo para considerar alguns dos temas que ele aborda em profundidade, mostrando a beleza do Evangelho. Trata de algumas temáticas muito importantes para a fé, tais como a liberdade, a graça e o modo de vida cristão, que são extremamente relevantes, pois tocam muitos aspectos da vida da Igreja de hoje. Esta é uma Carta muito actual. Parece ter sido escrita para os nossos tempos. 
Como diz o Papa, a situação que Paulo descreve não está longe da experiência que muitos cristãos vivem na nossa época. Com efeito, ainda hoje, não faltam pregadores que, especialmente através dos novos meios de comunicação, podem perturbar as comunidades. Apresentam-se não para anunciar o Evangelho de Deus que ama o ser humano em Jesus Crucificado e Ressuscitado, mas para repetirem com insistência, como verdadeiros “guardiães da verdade” – assim se consideram – qual é a melhor maneira de ser cristão. 
Afirmam energicamente que o verdadeiro cristianismo é aquele ao qual estão ligados, frequentemente identificado com certas formas do passado, e que a solução para as crises de hoje é voltar atrás para não perder a autenticidade da fé. 
Hoje, como outrora, existe a tentação de se fecharem em algumas certezas adquiridas em tradições passadas. O Papa pergunta: Como podemos reconhecer esta gente? 
E responde: por exemplo, uma das características do modo de proceder é a rigidez. Face à pregação do Evangelho que nos torna livres, jubilosos, eles são rígidos. Sempre a rigidez: deve-se fazer isto, deve-se fazer aquilo… A rigidez é própria dessas pessoas. 
A Carta aos Gálatas é, pelo contrário, a carta dos caminhos da liberdade solidária e alegre que nos coloca ao serviço uns dos outros. 

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Hans Küng, Aquilo em que creio, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2014, pp. 216-218

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