Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO
1. Parece que, para algumas pessoas, ainda não passou o tempo de associar as palavras religião e alienação. Foram consideradas como equivalentes e, por vezes, com alguma razão. No entanto, esta identificação não tinha nem tem em conta a grande variedade de religiões do mundo, nem as suas histórias de fidelidade à sua inspiração mais profunda e os seus momentos de traição. Mas, como ignorar o vasto mundo que encontra, na fé religiosa, motivação e energia para enfrentar os desafios da sua própria vida e que mantém aberta a pergunta: em que posso ajudar? Tornar-se cada vez mais competente, para melhor servir, devia ser a preocupação fundamental da existência humana. A religião, quando é verdadeira, quando faz coincidir a sua abertura à transcendência com a sua abertura à transformação do mundo, não enfraquece o ser humano, robustece-o em todas as suas dimensões.
A partir do pontificado de Bergoglio (2013), é preciso ser cego e surdo para não ver e ouvir as distinções que o Papa soube proclamar e desenvolver, por palavras e acções, por documentos e intervenções, o que eram deformações do catolicismo e o que eram fidelidades ao Evangelho de Cristo. E não só. Levou outras figuras de outras religiões a proclamarem que, em nome de Deus, só se pode praticar o bem. Ofender e matar em nome de Deus, em nome da religião, é um crime, não apenas contra os seres humanos e a natureza, mas também contra o próprio Deus. A glória de Deus é o esplendor da vida humana. Não ter isto em conta é incapacitar-se para distinguir, nas manifestações religiosas e no próprio catolicismo, o que contraria, o que exprime e realiza a autenticidade religiosa.
A conversão e as reformas têm de acompanhar o mundo humano e religioso. Se a natureza, na maior parte dos casos, é construtiva, os seres humanos, por causa da desagregação dos seus apetites e quando se deixam desorientar, são tentados a atraiçoar-se a si próprios e ao mundo. O ser humano não é um ser acabado, tem de se tornar humano em todas as suas dimensões e etapas da vida. De outro modo, degrada-se.
O Papa Francisco manifestou-se, desde o começo, que não vinha para repetir, mas para interrogar o mundo católico: como foi possível deixar que a alegria do Evangelho tivesse sido interpretada e vivida como uma fonte de tristeza?
Este não é um destino fatal. Ao escolher o nome de Francisco para o seu pontificado, evocava, de uma forma inequívoca, que a história da Igreja também foi e deve ser um caminho de alegria.
Em 2015, surgiu a encíclica Laudato Si’ (LS) inspirada num belo hino de Francisco de Assis. Justifica, logo no começo, o que o motivou: “Mais de cinquenta anos atrás, quando o mundo oscilava sobre o fio duma crise nuclear, o Papa São João XXIII escreveu uma encíclica na qual não se limitava a rejeitar a guerra, mas quis transmitir uma proposta de paz. Dirigiu a sua mensagem, Pacem in terris, a todo o mundo católico, mas acrescentava: e a todas as pessoas de boa vontade. Agora, à vista da deterioração global do ambiente, quero dirigir-me a cada pessoa que habita neste planeta. Na minha exortação Evangelii gaudium, escrevi aos membros da Igreja, a fim de os mobilizar para um processo de reforma missionária ainda pendente. Nesta encíclica, pretendo especialmente entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum” (LS 3).
Chamar a estes documentos fontes de alienação religiosa seria uma declarada expressão de alienação anti-religiosa.
2. Não posso, neste espaço, analisar a LS que, aliás, continua desconhecida, muito pouco aplicada, mesmo em ambientes da Igreja. Recordo, no entanto, as suas preocupações: grito da Terra, grito dos pobres, economia ecológica, adopção de estilos de vida simples, educação ecológica, espiritualidade ecológica, envolvimento comunitário e acção participativa.
O destino universal deste documento, que nunca deverá ser esquecido, tem de começar por agitar o próprio mundo católico. O Papa não fez um documento para figurar nas estantes dedicadas à religião. Era e é um instrumento de trabalho. Para que este objectivo não fosse esquecido, cinco anos depois, anunciou uma Plataforma de Acção Laudato Si’ como parte do Ano Especial de Aniversário desta encíclica. Em Maio de 2021, foi apresentada essa Plataforma que é uma ferramenta para capacitar as instituições, comunidades e famílias católicas a implementar a LS. Como diz o Papa, “vamos cultivar o respeito pelos dons da Terra e da criação, vamos inaugurar um estilo de vida e uma sociedade que finalmente seja ecossustentável: temos a oportunidade de preparar um amanhã melhor para todos. Recebemos das mãos de Deus um jardim, não podemos deixar um deserto para os nossos filhos”.
Esta ferramenta é para uso das famílias, paróquias e dioceses, instituições educativas, instituições de saúde, organizações e grupos, sector económico e comunidades religiosas.
Entretanto, foi esse o trabalho do Papa Francisco e do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. Como diz o seu prefeito, o cardeal Peter Turkson, “agora, mais do que nunca, é hora de agir, de fazer algo concreto. Todos nós podemos mudar para um futuro justo e sustentável. Devemos repensar e aplicar novos modelos; rejeitar comportamentos de vida questionáveis e envolvermo-nos em novas realidades vividas. Precisamos de reconhecer o nosso papel como cidadãos ecológicos e tornar o mundo um lugar mais verde e melhor, mais saudável para nós e sustentável para as nossas vidas”.
O Pe. Joshtrom Isaac Kureethadam, director do Sector Ecologia e Criação, no Vaticano, sublinhou algo de essencial: “A nossa oração e o nosso sonho é iniciar um movimento popular de baixo para cima que possa realmente trazer a mudança radical necessária, dada a urgência da crise da nossa Casa Comum… Esperamos criar a massa crítica necessária para a transformação da sociedade.”
3. Uma coisa são desejos, outra são projectos e outra, ainda, são as realizações. Neste caso, já podemos ter a certeza que não se ficará no domínio das boas intenções. Sente-se que há vários movimentos convergentes.
O Vaticano e as embaixadas do Reino Unido e da Itália na Santa Sé promovem, a 4 de Outubro próximo, o encontro Fé e Ciência: Rumo à COP26, que reunirá cerca de 40 líderes das principais religiões do mundo e dez cientistas de “renome internacional”. No final do encontro, será lançado um apelo conjunto, de forma a pressionar a Conferência das Partes, que decorrerá entre 1 e 12 de Novembro, em Glasgow (Escócia) [1].
O Céu do Papa Francisco obriga-o a cuidar da Terra.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. 7Margens e Ecclesia, 18. 06. 2021