no PÚBLICO
Fala-se muito contra o clericalismo, mas, depois, reserva-se ao clero o que podia ser realizado pelo conjunto dos cristãos
1. Desde há muitos anos que escuto a repetição da mesma pergunta: porque é que os católicos vão à Missa? Antes desta pergunta, não havia pergunta: vão à Missa porque é um mandamento da Santa Madre Igreja. Como as Missas eram em latim, e como acontecimento divino, tinham todas o mesmo valor. Os que não rezassem o terço só esperavam que ela fosse rápida. Entretanto, veio o Concílio Vaticano II e foram rapidamente aprovadas as grandes linhas da reforma litúrgica, pois era a realização dos estudos e anseios do movimento litúrgico [1]. Mais demorada, atribulada e polémica foi a sua execução.
As novas gerações não podem, sequer, imaginar esse passado. Existem, porém, grupos saudosos da Missa em latim para continuarem uma época quase extinta. As razões da diminuição da prática dominical, em vários países, não se confundem com essa reforma e a pergunta regressa e apresenta-se de uma outra maneira: o que é que os católicos vão fazer à Missa?
A resposta mais simples e directa: vão celebrar a sua fé. Num tempo e lugar determinados, fazem a festa da universal família de Cristo. Os celebrantes estão sempre marcados pela cultura e pelos problemas locais abertos ao mundo todo. Seria normal que os rituais da festa espelhassem essa dupla condição.
O mundo está sempre em evolução. Os celebrantes — todos os participantes — não podem situar-se fora do que acontece à sua volta e das transformações que, lentamente, vão acontecendo na Igreja.
Na crónica do dia 30 de Maio, já referi o novo contexto em que se deve desenvolver toda a vida da Igreja: a 7 do passado mês de Março, foi anunciado um Sínodo dos bispos para dizer que não será só de bispos, mas de toda a Igreja, de homens e mulheres. É a pirâmide invertida.
Já a 17 de Outubro de 2015, o Papa tinha essa preocupação sinodal: “Aquilo que o Senhor nos pede, de certo modo, está já tudo contido na palavra Sínodo. Caminhar juntos — leigos, pastores, Bispo de Roma — é um conceito fácil de exprimir em palavras, mas não é assim fácil pô-lo em prática. O caminho sinodal é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milénio.”
No próximo mês de Outubro, começa essa prática: o Papa dará início a um caminho sinodal de três anos e articulado em três fases (diocesana, continental, universal), feito de consultas e discernimento, que culminará com a assembleia de Outubro de 2023 em Roma. O que diz respeito a todos deve ser tratado por todos. A lei é esta: “Um à escuta dos outros; e todos à escuta do Espírito Santo.”
Não vamos suspender a vida da Igreja até às conclusões do sínodo. Não vamos fechar a Igreja para obras. Cada um de nós tem um tempo limitado de vida para se tornar melhor e tornar melhor o mundo. Nunca existiu um paraíso, um mundo perfeito, mas que pode ser diferente, pode ser melhor para todos. Não deixar para mais tarde o que já pode ser feito agora.
2. Que fazer desde já? Para que são convocados os católicos que frequentam as celebrações da fé cristã? As assembleias celebrantes são compostas de pessoas com talentos, profissões e carismas muito diversos. Nas celebrações, sentem-se convocadas para quê? Será apenas para passar uns momentos de oração e ouvir homilias, boas, medíocres ou insignificantes?
Uma celebração não é um comício nem uma conferência, mas não deve estar desligada do que está a acontecer na sociedade e na Igreja. Deve ser a interpretação e a transfiguração musical, poética, mística e ética de toda a semana. É mais do que uma revisão de vida, não menos. O importante é saber relançar a esperança no meio das incertezas. Ninguém deveria regressar a casa satisfeito com o que já conseguiu. É fundamental entender que o bom caminho é o das perguntas pertinentes. A arte de se interrogar e de acolher interrogações é a melhor companhia de quem está vivo e não é indiferente ao que acontece [2].
O tempo dos protestos contra o que está mal nunca pode ser encerrado, mas é estéril se não conduzir a intervenções transformadoras. Antes do Papa Francisco, não faltaram pessoas e movimentos de protesto. Em muitos aspectos, o Papa já foi mais longe do que muitos poderiam esperar. As suas intervenções directas e através de documentos já cobriram as grandes dimensões de uma vida humana responsável pela ecologia integral, propostas de trabalho para uma nova economia, acolhimento dos gritos da terra, dos pobres e explorados.
Quanto às reformas internas do Vaticano, nada parece esquecido, não só pelas recentes auditorias à Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos e à Congregação para o Clero, como o documento, esperado para breve, da reestruturação da Cúria.
Porque será que as homilias das celebrações da Missa são sempre feitas pelos padres e bispos? Nas assembleias litúrgicas existem mulheres e homens, de profissões muito diferentes, que poderiam ser chamados a preparar e a fazer as homilias. Fala-se muito contra o clericalismo, mas, depois, reserva-se ao clero o que podia ser realizado pelo conjunto dos cristãos. É evidente que as celebrações da fé não esgotam outras iniciativas que testemunhem que os cristãos devem ser sal da terra e luz do mundo. Pelo contrário, exigem-nas e devem provocá-las com diversas formas de organização. António Marujo e Ricardo Perna (Família Cristã) apresentaram, no 7Margens (08.06.2021), algumas das iniciativas já postas em prática, em várias instituições católicas portuguesas, tentando corresponder aos apelos e sugestões do Papa Francisco na encíclica Laudato Si’.
O texto do Evangelho escolhido, para este Domingo, pertence ao capítulo 4 de S. Marcos, um capítulo fabricado com parábolas e com um grande enigma que roça o absurdo: para que vendo, vejam e não percebam; e ouvindo, ouçam e não entendam; para que não se convertam e não sejam perdoados. Se o efeito procurado é este, mas valia estar calado e ser surdo. Esta citação é também uma parábola que diz, de forma paradoxal, o fundo de todas elas: para entender é preciso querer entender; para se converter é preciso desejar mudar de vida.
As parábolas são uma forma de linguagem para obrigar a pensar, para querer entender as suas múltiplas significações e incendiar a imaginação. Não pertencem à linguagem da publicidade ou do marketing, de levar o auditório, através de habilidades, a um objectivo preestabelecido sem que o auditório se perceba que está a ser manipulado. A parábola, pelo contrário, exige um percurso intelectual e afectivo para descobrir significações que não estão à vista. Não é uma linguagem unívoca, mas simbólica, de muitas significações, como é a realidade do mundo e do Reino de Deus.
Tanto a parábola da semente que germina por si só como a do grão de mostarda não são lições para agricultores. Os semeadores do Evangelho de Cristo não dispõem de um manual de instruções para obter um bom resultado das suas intervenções. São semeadores de perguntas, de enigmas, de provocações a pensar, imaginar e agir, sem garantias de sucesso.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO de hoje
[1] Constituição conciliar, Sacrosanctum concilium, sobre a sagrada liturgia, 1963. [2] Cf. Gianfranco Ravasi, Adán, donde estás? Preguntas antropológicas contemporâneas, BAC Popular, 2020.