1. O autor do título desta crónica é um mártir cristão, o pastor luterano Dietrich Bonhoeffer (1904-1945). Deixo, aqui, um breve apontamento para situar essa expressão paradoxal que nada tem a ver com agnosticismo ou ateísmo.
No início de 1933, a ascensão de Hitler ao poder provocou uma disputa no seio da Igreja Evangélica Alemã, à qual Bonhoeffer pertencia. Muitos luteranos acolheram favoravelmente o advento do nazismo e, no Verão de 1933, alguns até propuseram uma resolução que impedia os “não arianos” de se tornarem ministros de culto ou professores de religião. Bonhoeffer opôs-se a essa tese, afirmando que a sua ratificação submeteria os ensinamentos cristãos à ideologia política: se os “não arianos” fossem impedidos de aceder ao ministério, então, os pastores teriam de renunciar, em sinal de solidariedade, e de fundar uma nova Igreja livre da influência do regime.
Em Maio de 1934, nasceu a Igreja Confessante, liderada pelo próprio Bonhoeffer em oposição aberta ao nazismo e ao silêncio da Igreja oficial. Em Agosto de 1937, foi publicada uma ordem de Himmler que declarava ilegal a actividade da formação de candidatos a pastores para a Igreja Confessante e, em Setembro, o Seminário de Finkenwalde foi fechado pela Gestapo.
Bonhoeffer não estava parado nas suas actividades e continuava professor na clandestinidade. Em Janeiro de 1938, a Gestapo expulsou-o de Berlim e, em Agosto de 1940, foi proibido de falar em público. Em Março de 1941 foi proibida a publicação dos seus escritos.
Entretanto, estava ligado a um grupo de resistência e conspiração contra Hitler. Foi preso no dia 5 de Abril de 1943, acusado de conspirar contra Hitler. Condenado por um tribunal, juntamente com o Almirante Canaris, cinco militares de alta patente e um juiz, foi enforcado no dia 9 de Abril de 1945, dez dias antes da libertação do campo. No dia anterior à execução, despediu-se de um prisioneiro inglês, dizendo: “Este é o fim – para mim, o começo da vida.”
Em 1955, o médico do campo de concentração, Hermann Fischer-Hüllstrung, dá o seguinte testemunho: “Eu vi o pastor Bonhoeffer ajoelhado, rezando ferverosamente a Deus. Fiquei profundamente comovido com a maneira como esse homem, extraordinariamente simpático, rezava tão devoto e certo de que Deus ouvia a sua oração, antes de se despir (os executados deviam despir-se completamente e ir nus para a forca). No lugar da execução, rezou novamente uma breve oração e, depois, subiu os poucos degraus da forca, corajoso e calmo. A sua morte ocorreu após alguns segundos. Nos meus quase 50 anos de atividade médica, dificilmente vi um homem morrer tão inteiramente entregue nas mãos de Deus.”
O que se passou sob o ponto de vista religioso, na experiência da cadeia, foi o convívio com pessoas sem referência a Deus: “Não podemos ser honestos sem reconhecer que temos de viver no mundo etsi Deus non daretur (como se Deus não existisse). E isso é precisamente o que reconhecemos… perante Deus! É o próprio Deus quem nos obriga a esse reconhecimento. Assim, o nosso acesso à maioridade leva-nos a um verdadeiro reconhecimento da nossa situação perante Deus. Deus faz-nos saber que temos de viver como seres humanos que conseguem viver sem Deus. O Deus que está connosco é o Deus que nos abandona (Mc 15, 34: Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?). O Deus que nos faz viver no mundo sem a hipótese de trabalho ‘Deus’ é o Deus, perante o qual, nos encontramos constantemente. Perante Deus e com Deus, vivemos sem Deus. Deus, cravado na cruz, permite que o expulsem do mundo. Deus é impotente e débil no mundo e, precisamente, só assim está connosco e nos ajuda. Mt 8, 17 indica-nos claramente que Cristo nos ajuda não pela sua omnipotência, mas pela sua debilidade e pelos seus sofrimentos.”
A sua experiência está marcada pelo que viu em Cristo, completamente fiel a Deus, sem que Deus se tenha mostrado na sua paixão e na sua morte. Acabou, no entanto, dizendo: nas Tuas mãos entrego o meu espírito [1].
2. Etty Hillesum, uma judia holandesa, morta em Auschwitz, aos 28 anos, deixou-nos um testemunho, não só de um Deus impotente e débil no mundo, mas também um Deus que precisa de ajuda:
“(...) Cada dia já tem a sua conta. Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares, apesar de eu não poder garantir nada com antecedência. Mas torna-se-me cada vez mais claro o seguinte: que tu não nos podes ajudar, que nós é que temos de te ajudar e, ajudando-te, ajudamos a nós próprios. E esta é a única coisa que podemos preservar nestes tempos e também a única que importa: uma parte de ti em nós, Deus. E talvez possamos ajudar a pôr-te a descoberto nos corações atormentados de outros. (...) Como vês trato bem de ti. (...) E se Deus não me ajudar mais, nesse caso hei-de eu ajudar a Deus.” [2]
Quer o testemunho de Bonhoeffer, quer o de Etty Hillesum levantam a questão da oração. Mostram que a oração, como diz o Papa Francisco, não é para converter a Deus, mas para nos convertermos ao Seu amor que excede tudo o que poderíamos desejar e pedir. Não é um acto de magia ou um negócio, mas uma abertura, cada vez mais radical, ao Seu insondável mistério.
O Evangelho já tinha atribuído a Jesus o conselho de não multiplicarmos as nossas palavras, como se Deus não soubesse o que se passa connosco e com o mundo. Como diz S. Paulo, nós não sabemos rezar. É o Espírito que vem em auxílio da nossa fraqueza, pois não sabemos o que havemos de pedir, para rezarmos como deve ser; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis. E aquele que perscruta os corações conhece os desejos do Espírito, pois é segundo Deus que o Espírito intercede pelos santos [3].
É evidente que nós não podemos abdicar de exprimir o que sentimos, o que desejamos, para nós e para os outros. George Bernanos, um grande romancista católico, insistia na necessidade da oração pessoal e acrescentava: nunca obtive o que pedi, mas saí sempre da oração transformado, mais convertido.
3. A expressão como se Deus não existisse pode ter muitas interpretações e não apenas as que referimos nesta crónica. Pode também ser a expressão da indiferença perante o fenómeno religioso. Os meios de comunicação correntes fazem de conta que Deus ou a religião não existem: não são notícia a não ser quando há escândalos.
É importante que a laicidade seja a regra dos regimes políticos e que garanta a liberdade religiosa. A religião não é um fenómeno privado, é também um fenómeno social de muitas faces. Daí, a importância de meios de comunicação, como o 7Margens, a Pastoral da Cultura, a Ecclesia, etc., que sejam abertos ao pluralismo religioso e ao diálogo inter-religioso.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. Dietrich Bonhoeffer, Resitência e submissão. Cartas e anotações escritas na prisão, Sinodal, 2003; cf. também Como se Deus não existisse, Eduardo Lourenço e Luís de França, Reflexão Cristã, n.º 42, pp. 29-58
[2] Etty Hillesum, Diário 1941-1943, Assírio & Alvim, 2009, pp. 251-252 e 245
[3] Rm 8, 26-27