Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO
Deus e o Seu Cristo não precisam de gente pasmada a fazer de contemplativos. Não adianta celebrar o Pentecostes, no próximo Domingo, se não quisermos nascer de novo.
1. Estamos em Maio, o mês de algumas colheitas e laboriosas sementeiras. Já não é com os antigos rituais pagãos que se procura proteger e ajudar a múltipla fecundidade da natureza em festa. É possível que ainda subsistam algumas das suas expressões como, por exemplo, a tradição das maias e da espiga, mas já não exercem grande sedução.
O 1.º de Maio evoca e actualiza as reivindicações dos trabalhadores. A Igreja católica celebra S. José Operário e a devoção relança o começo do Mês de Maria. Em Portugal, desde o século passado, a movimentação religiosa está focalizada em Fátima, o nosso maior e mais visitado santuário mariano. Certa devoção mais exaltada consagrou-o como altar do mundo. O 13 de Maio é o momento mais alto de todas as peregrinações que passaram a ter edições mais breves durante todo o ano. Não creio que a pandemia vença a sua atracção religiosa.
Neste Domingo, o calendário litúrgico prescreve a celebração da Ascensão de Cristo. Julgo que não lembra a ninguém fazer, desse dia, a festa dos astronautas, mas a sua significação é extraordinariamente importante, na prodigiosa narrativa de S. Lucas, unificada e diferenciada em dois volumes. Não segue, em tudo, o esquema das outras narrativas do Novo Testamento.
Ernest Renan considerava o primeiro "o livro mais belo que existe”. O segundo é, na opinião de Frederico Lourenço, “uma obra superlativamente bem escrita que, para lá das suas magníficas qualidades literárias (dir-se-ia mesmo cinematográficas – tal é a vivacidade pictórica da narrativa, carregada de suspense e povoada de personagens retratadas com estudado realismo a viver situações extremas de perigo, pranto e exaltação), exerce também pela sua temática um especial fascínio, devido ao facto de nos descrever o ‘dia seguinte’ após ter sido cumprida, na Terra, a missão de Jesus. O livro tem o objectivo declarado de narrar as primeiras etapas do novo movimento religioso inspirado na vida e testemunho de Cristo e, sendo o herói da narrativa o apóstolo Paulo, este texto constitui, para muitos leitores ainda hoje, um documento fundamental para a reconstituição dos primórdios do cristianismo” [1]. Não se podia dizer melhor!
2. S. Lucas, no primeiro volume, inscreve a genealogia de Jesus na história de toda a humanidade, para dizer que a sua vida é também para toda a humanidade, como diz nos Actos dos Apóstolos [2]. Deus não faz acepção de pessoas nem de povos.
Quando Jesus andava à procura do Seu próprio caminho, encontrou-se com o movimento de João Baptista que pregava e baptizava no rio Jordão. Quando julgava que tinha encontrado o seu caminho, na severa e ameaçadora pregação do Baptista e no banho sagrado do rio Jordão, aconteceu precisamente o contrário. S. Lucas conta que, depois deste baptismo, Jesus entrou em oração, isto é, entregou-se à imaginação criativa de Deus. Nessa experiência mística, o céu abriu-se e o Espírito Santo desceu sobre Ele, em forma corporal como pomba, e do céu veio uma voz: Tu és o meu filho bem-amado; eu hoje te gerei.
Esta experiência obrigou-o a repensar tudo acerca do céu e da terra. Partiu para o deserto, para um grande retiro de quarenta dias, povoado de horríveis tentações acerca dos messianismos político-religiosos que circulavam naquela sociedade.
Acabou por desenhar um programa que alterava esses messianismos e fazia uma selecção na própria proposta de Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar o ano de graça do Senhor” [3].
Ao servir-se desta passagem de Isaías, suspendeu a continuação porque falava do dia da vingança do nosso Deus que Jesus não podia aceitar. Aliás, esta omissão espantou o seu auditório a ponto de o expulsarem da cidade, de o conduzirem ao cimo da colina com a intenção de se livrarem dele.
João foi preso e os seus discípulos não tinham boa opinião do que se estava a passar com as iniciativas libertadoras de Jesus. João sentiu-se obrigado a enviar-lhe uma pergunta decisiva: És tu o que há de vir ou devemos esperar outro?
Jesus reafirmou que o seu programa já estava em acção e que os emissários podiam verificar. Fez o elogio rasgado de João, mas acrescentou: o menor no Reino de Deus é maior do que ele. Consumava-se a ruptura. As pessoas já não eram medidas pela sua capacidade ascética nem pelas suas maravilhosas acções ou pelo seu poder social, religioso e político.
A que seria devido a resistência dos discípulos em seguir o Mestre, mesmo os chamados apóstolos? A explicação é dada no Evangelho: não percebiam qual era o Espírito que movia Jesus, para andar à procura de tudo o que estava perdido, em vez de fazer uma carreira política em nome de Deus, estabelecendo um regime teocrático [4].
3. Com as narrativas da Ressurreição de Cristo, os outros evangelistas deram a sua obra por concluída. S. Lucas escreveu um astucioso segundo volume para mostrar que os seus discípulos continuavam a não entender nada, porque não tinham percebido o acontecimento que alterou toda a vida de Jesus na terra. Eles não entendiam o que movia as insólitas atitudes de Jesus. Com a crucifixão ficaram derrotados e as narrativas da ressurreição não os convenceram que tinham de mudar: queriam cargos políticos na teocracia que desejavam.
Isto é evidente no início dos Actos dos Apóstolos: Estando com eles reunidos, perguntaram-lhe: Senhor, é agora que vais restaurar o Reino de Israel? Não tinham aprendido nada.
A resposta do Ressuscitado é muito engraçada e podia ser a que foi dada a Nicodemos: tendes de nascer de novo. Sem nascer de novo continuareis com os mesmos sonhos loucos. Segundo o texto dos Actos dos Apóstolos, Jesus cortou uma conversa sem sentido: Não vos compete saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou com a sua autoridade.
O que importa é que ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo. Sem o Espírito que moveu a minha vida, continuareis sentados.
Dito isto, elevou-se à vista deles e uma nuvem subtraiu-o a seus olhos. E como estavam com os olhos fixos no céu, para onde Jesus se afastava, surgiram de repente dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: Homens da Galileia, porque estais assim a olhar para o céu? Esse Jesus que vos foi arrebatado para o Céu virá da mesma maneira, como agora o vistes partir para o Céu.
Deus e o Seu Cristo não precisam de gente pasmada a fazer de contemplativos.
Não adianta celebrar o Pentecostes, no próximo Domingo, se não quisermos nascer de novo.
Frei Bento Domingues, no PÚBLICO
[1] Frederico Lourenço, Nota introdutória aos Actos dos Apóstolos, in Bíblia. Novo Testamento, Volume II, Quetzal, 2016, pág. 45
[2] Lc 3, 23-38 e Act 4, 11-12
[3] Lc 4, 16-30
[4] Lc 22, 24-27; Mc 10, 35-45; Mt 20, 20-28. A incompreensão dos apóstolos é muito sublinhada em Marcos. Ver: Mc 6, 52; 7, 18; 8, 17-18.21.23; 9, 10.32; 10, 38