Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO
1. Todas as celebrações cristãs implicam três dimensões: não perder a memória, enfrentar os desafios do presente e abrir o futuro. A essência do cristianismo não é uma ideia abstracta. Está intrinsecamente ligada a uma pessoa histórica viva: Jesus de Nazaré.
S. Paulo advertiu que ninguém pode colocar um alicerce diferente deste [1]. Como observa Hans Küng, a vida, os ensinamentos e a actividade de Jesus de Nazaré destacam-se, claramente, em comparação com outros fundadores de religiões. Jesus não foi uma pessoa formada na corte, como aparentemente foi Moisés, nem filho de príncipe como Buda. Também não foi um erudito e político como K’ung Fu-tzu nem um comerciante rico e cosmopolítico como Maomé. É precisamente pela sua condição social tão insignificante que se torna tão espantosa a sua inultrapassável importância.
Não defende: a validade incondicional de uma lei escrita que se desenvolve sem cessar (Moisés); um modelo de vida monástico, dentro de uma comunidade regulamentada (Buda); a renovação da moral tradicional e da sociedade estabelecida, em consonância com uma lei cósmica (K’ung Fu-tzu); as revolucionárias conquistas violentas, em luta contra os infiéis, e a fundação de um Estado teocrático (Maomé).
Não se identifica com os poderosos, com os rebeldes, com os moralizadores nem com os submissos. A sua vida é um permanente desafio inovador [2].
Ao celebrar hoje o Pentecostes, não podemos eliminar a referência à narrativa dos Actos dos Apóstolos.
S. Lucas escreveu uma obra em dois volumes. Já destacámos, na crónica anterior, a sua grande qualidade literária. No primeiro volume, aborda o sentido e a novidade da intervenção de Jesus na história humana que terminou de forma trágica. Foi condenado à morte como se fosse um traidor da causa do Deus de Israel. Pouco depois, as mulheres que O seguiram na vida e na condenação testemunharam que Ele não era um derrotado: estava vivo. Deus não O abandonou. Todas as narrativas, de Mateus, de Marcos, de Lucas e de João, dizem que Ele não só está vivo, como é preciso continuar o Seu caminho. Não de qualquer maneira, mas com o mesmo Espírito que moveu toda a intervenção de Jesus.
A originalidade de S. Lucas foi a de mostrar o difícil processo de conversão dos discípulos para continuarem o caminho do Ressuscitado. No Domingo passado, a propósito da Ascensão, verificámos que eram discípulos parados, pasmados, presos pelo medo, sem iniciativa e sem imaginação. Era uma comunidade paralisada.
O melhor é observar como Lucas descreve a situação: regressaram a Jerusalém e, quando chegaram à cidade, foram para o lugar onde se encontravam habitualmente. Estavam lá: Pedro, João, Tiago, André, Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão, o Zelota, e Judas, filho de Tiago. Todos unidos pelo mesmo sentimento, entregavam-se assiduamente à oração, com algumas mulheres, entre as quais Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos de Jesus [3]. Este cenário, como veremos já a seguir, não era o desejado por Cristo nem conforme ao Espírito da sua vida.
2. Quando chegou o dia do Pentecostes, isto é, 50 dias depois da Páscoa, continuavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde eles se encontravam. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava.
Lucas é um grande artista. Escolheu o tempo mais adequado ao lançamento do novo movimento. Nessa altura, celebrava-se o Pentecostes judaico e Jerusalém estava cheia de judeus piedosos provenientes de todas as nações que há debaixo do céu. Ao ouvir aquele ruído, a multidão reuniu-se e ficou estupefacta, pois cada um os ouvia falar na sua própria língua. Atónitos e maravilhados, diziam: mas esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa, então, para que cada um de nós os oiça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes, ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus! Estavam todos assombrados e, sem saber o que pensar, diziam uns aos outros: que significa isto? Outros, por sua vez, diziam, troçando: estão cheios de vinho doce.
De pé, com os Onze, Pedro ergueu a voz e dirigiu-lhes então estas palavras: Homens da Judeia e todos vós que residis em Jerusalém, ficai sabendo isto e prestai atenção às minhas palavras. Não, estes homens não estão embriagados como imaginais, pois apenas vamos na terceira hora do dia. Mas tudo isto é a realização do que disse o profeta Joel: derramarei o meu espírito sobre toda a carne. Os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos anciãos terão sonhos e os vossos jovens terão visões.
Homens de Israel, escutai estas palavras: Jesus de Nazaré, homem acreditado por Deus junto de vós, com milagres, prodígios e sinais, vós o matastes, cravando-o na cruz pela mão de gente perversa. Mas Deus ressuscitou-o, libertando-o dos grilhões da morte, pois não era possível que ficasse sob o seu domínio [4].
3. Nesta narrativa, S. Lucas apresenta Pedro como pregador e como deveriam ser todas as homilias da Missa: lembrou o passado, interpretou o presente e abriu o futuro.
O Pentecostes cristão proclama que a unidade não é a uniformidade, implica a diversidade: cada um os ouvia falar na sua própria língua. O desejo de uma humanidade com uma só cultura, uma só língua, um só projecto é o mito da Torre de Babel que Deus não pode aceitar. É Ele o defensor da diversidade humana.
As comunidades cristãs são muito diferentes e estão sempre situadas num tempo e num lugar, muito diversos sob o ponto de vista geográfico e cultural, e têm de assumir e exprimir essas diferenças.
A celebração do Pentecostes só tem sentido se a Igreja aparecer, aos olhos do mundo, como o espaço e o tempo da liberdade e da criatividade.
Frei José Augusto Mourão cantava: Sopro criador, vem/ distribuir a fala. / Vem, força de partir, / vem rio de fogo largo// Tu és a nossa vontade de viver/ intensamente a vida até ao fim./ O presente e o futuro da nossa esperança/ o que anima a festa no coração do homem.
Ainda nos custa lidar com o Espírito do Pentecostes: em nome da unidade, sacrificamos a diversidade; em nome da diversidade, não cuidamos da unidade. É assunto para futuras crónicas.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] 1Cor 3, 11
[2] Cf. Hans Küng, Aquilo em que creio, Temas e Debates – Círculo de Leitores, 2014, pp. 216-217
[3] Cf. Act 1, 12-14.
[4] Cf. Act 2, 1-24