domingo, 4 de abril de 2021

Não somos para a morte

Crónica de Bento Domingues 
no PÚBLICO
 
O que haverá de original naqueles que fazem da Ressurreição de Cristo um princípio de vida pessoal e de intervenção social?

1. Por causa da crónica do passado domingo, um velho conterrâneo telefonou-me para me dizer o seu desconsolo com a Páscoa de agora, que já não tem graça nenhuma.
Não se referia às missas mascaradas. Manifestou-me simplesmente as saudades da maior e mais antiga festa da sua aldeia, onde agora raramente vai, testemunhando a sua progressiva desertificação. O tempo dos foguetes, acompanhados com os sinos alegres da Igreja, a banda de música entusiasmada a levar, em cortejo, a cruz enfeitada e luminosa a todas as casas, por caminhos transformados em tapetes de verdura e flores, para levar a todos a espantosa notícia – Aleluia, Cristo ressuscitou, aspergindo a família e a casa com água abençoada –, é um tempo que já só existe no museu da sua memória!
O mundo rural da nossa infância não tem grandes hipóteses de transfiguração religiosa. Para as comunidades católicas urbanas, é preciso escutar e interrogar o Prof. Alfredo Teixeira. É um antropólogo, músico e teólogo que não se alimenta de lamúrias, mas de criações, no seio da contemporaneidade, estimulado pelos contributos pioneiros da linguagem litúrgica do saudoso dominicano, Frei José Augusto Mourão.
De forma mais radical, perguntam-me se terá ainda sentido celebrar a Ressurreição. Os próprios textos do Novo Testamento (NT), desde o século XVIII, passando por sucessivas vagas de investigação até ao nosso tempo, continuam sem oferecer nenhuma segurança histórica [1].
A crença de que a vida não acaba com a morte, que a morte não é a última palavra sobre a vida humana, é das convicções, com formulações muito diversas, mais presente em quase todos os povos. O niilismo não é, como alguns pretendem, a atitude mais difundida. O que haverá, então, de original naqueles que fazem da Ressurreição de Cristo um princípio de vida pessoal e de intervenção social?

2. S. Paulo, de perseguidor dos discípulos do Nazareno, que teimavam em difundir a convicção de que Aquele que tinha sido crucificado e sepultado estava vivo, teve uma real e misteriosa experiência de encontro com o Ressuscitado, tão avassaladora, que passou a ser o apóstolo mais criativo na difusão da nova fé. Chegou ao ponto de afirmar: para mim, viver é Cristo e morrer é lucro [2]. Paulo foi conquistado por aqueles que perseguia.
Ainda hoje, são muitos os milhões de cristãos perseguidos porque não abdicam de confessar que a energia que os anima é uma insurreição contra todas as formas de opressão, um grito de liberdade para todos, cristãos ou não. É uma fé que desperta para a transformação do mundo dos oprimidos. No testemunho que recebem de Cristo, descobrem que é Ele o caminho do futuro, o caminho da liberdade, o caminho da esperança.
Uma das dificuldades que muitos encontraram, e que se continua a verificar, na leitura do NT e nos fragmentos que dele aparecem nas missas, resulta de não se reparar que os evangelistas já escreveram muito depois do que aconteceu e no seguimento de muitas interpretações. Já sabiam o percurso e o fim da história de Jesus. Quando põem na sua boca vou sofrer e morrer, mas ao terceiro dia ressuscitarei, até parece que não é nada assim tão trágico. De facto, estão apenas a resumir, em forma de previsão, o desfecho de uma história que já conhecem e, sobre a qual, muito meditaram. Eles acreditaram e testemunham, interpretando. A escrita narrativa, que usaram, tem as suas exigências.
Muitas pessoas pensam, hoje, que alguém estava com um gravador e que, depois, teve o trabalho de passar para escrito ou, então, os autores dos Evangelhos tinham uma memória colossal, para reproduzirem o que se passou com Cristo e os discípulos. Uma ideia dessas tropeça com incongruências clamorosas: uns contam de uma maneira, outros contam de outra e não é fácil harmonizar as diferentes narrativas.
Em relação à morte e à ressurreição, fazem dessa realidade tremenda e gloriosa uma brincadeira: vou sofrer, vou morrer, mas ao terceiro dia estou na maior. Muitas homilias repetem, um bocado pior, o que foi lido sem se perguntar: que tem isto a ver connosco, hoje, e que temos nós a ver com o que aconteceu há mais de dois mil anos?
Essa dificuldade revela uma ignorância nem sempre culpada, porque circula em fórmulas codificadas, mas sem se conhecer o código que as podia abrir.

3. O movimento cristão e as comunidades que suscitou, em lugares e contextos muito diversos, teve gerações de pessoas que falavam do que tinha acontecido com conhecimento de causa. Estavam preocupados, não só em viver, mas em testemunhar a novidade que Cristo traz ao nosso modo de viver, de lutar, de curar, de pregar, de ser a companhia dos marginalizados pelos motivos mais diversos. Jesus não era apenas seu contemporâneo. Era uma causa para continuar, em formas de vida cultural e social muito diversas, pelos séculos dos séculos. Isto implica comunidades que têm de interpretar, naqueles testemunhos, o que os ajuda – nos ajuda –, hoje, a viver de forma nova. Acreditar, interpretando, é fidelidade à verdadeira tradição.
Quando alguns autores, como Paulo, Marcos, Lucas, Mateus e João, escreveram os seus textos – o chamado NT – dependiam, como é evidente, do seu talento pessoal, das comunidades diferentes a que pertenciam e de que se tornavam porta-vozes, escolhendo o que julgavam mais significativo para o caminho cristão.
S. João o diz explicitamente e de forma empolada: Jesus realizou ainda muitos outros sinais miraculosos, na presença dos seus discípulos, que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus e, acreditando, tenhais a vida eterna em seu nome. Depois, de forma ainda mais empolada: se elas fossem escritas, uma por uma, penso que o mundo não teria espaço para os livros que se deveriam escrever. [3] Nestes textos, podemos encontrar vozes plurais interpretantes, do primeiro século dos cristãos, mas são para provocarem mudanças de vida em todos os tempos e lugares do futuro. Para conseguir esse efeito, é preciso acreditar que Jesus está vivo no espírito e na vida de discípulos de hoje com problemáticas, questões, modos de ver o mundo, numa distância cultural de séculos. Significa que é preciso inventar música, literatura, pintura, teatro, cinema que possam tocar e cantar, como J. S. Bach: “Jesus continua a ser a minha alegria… é quem me dá força para viver… mantenho Jesus no meu coração e como meu horizonte.”
Hoje, nós, portugueses, temos de contribuir para ressuscitar Cabo Delgado, tornar real, aí, a Páscoa da Vida!
Maria da Conceição Moita já vive na Luz do Ressuscitado!

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Cf. entre outros, Andrés Torres Queiruga, Repensar la resurrección, Trotta, 2005; José Antonio Pagola, Jesus. Uma abordagem histórica, Gráfica de Coimbra, 2008; A. Cunha de Oliveira, A ressurreição dos mortos, Instituto Açoriano da Cultura, 2016
[2] Filipenses 1, 21
[3] Cf. Jo 20, 30-31; 21, 25

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